sexta-feira, 18 de outubro de 2013

ROSA MARIA NEVES SIMAS comunicação

Dando Voz à Mulher Migrante:
A Hibridação do Feminismo e o Estudo da Migração
Rosa Neves Simas
Universidade dos Açores
Ao analisar o percurso da crítica feminista, no artigo “Feminism Inside Out”
de 2006, Susan Gubar, nome incontornável do feminismo académico, reitera a
necessidade e pertinência de persistir neste rumo, apontando o que ela chama
“the hybridization of feminist criticism” (a hibridação do feminismo) como tendência
acentuada, na atualidade, nos estudos do género e da mulher (Gubar, 1712).
Segundo Gubar, a hibridação do feminismo constitui “its most heady current
morphing” (a sua mais estonteante reconfiguração), na fase atual desta corrente
de estudo e intervenção, fase que se convencionou chamar “third-wave feminism”
(terceira vaga do feminismo). No dizer de Astrid Henry, esta tendência resulta
de “the language and politics of hibridity” (a linguagem e a política da hibridação)
(Henry, 1719). Ao conjugar as palavras “mulher” e “migrante”, ao combinar o
estudo do género com o estudo da migração, este evento e a associação que o
organiza são exemplo ilustre desta característica híbrida do feminismo atual, por si
reflexo do hibridismo académico e da interdisciplinaridade na investigação.
Quando recorda as características da segunda vaga do feminismo, que
surge nos anos 60 e 70 do século passado, Gubar observa que “feminist criticism
addressed problems and audiences inside and outside the university” (a crítica
feminista atendeu a problemas e políticas dentro e fora da universidade), uma
clara alusão ao título do seu texto, “Feminism Inside Out” (Gubar, 1714). Num
elogio da pertinência da tradição feminista de intervir para além da academia,
característica que se mantém, Susan Gubar termina, afirmando: “Feminist critics
today realize that we have never been cocooned within institutions of learning, that
our job is not yet done and that we must continue to use our interpretive skills to
turn inside out the disturbing signs of our times” (Gubar, 1716).
Não estamos, efetivamente, “engaiolad@s” nas nossas instituições de
ensino e sabemos que “Our job is not yet done” – que ainda há muito a fazer.
Se esta constatação é válida nas questões ligadas ao género e à mulher – e é
– também o é no estudo da migração, globalmente. Efetivamente, há muito a
fazer – “inside out” – dentro e fora de Portugal. A conjugação mulher-migrante
representa um grande desafio, para que se faça mais e melhor, dentro e fora da
academia, para que haja mais conhecimento e intervenção, nas universidades e
nas comunidades, para nas palavras de Gubar, “continuarmos a utilizar as nossas
capacidades interpretativas para virar do avesso os sinais desorientadores do
nosso tempo”. Numa altura em que a desordem é muita e a desorientação não
falta, é cada vez mais importante conhecer e sensibilizar para as expressões de
cidadania, o grande desiderato que levou à realização deste congresso.
 Nesse sentido, ao reunir cem estudos e textos variados, escritos
maioritariamente por mulheres, mas também por homens, a antologia bilingue A
Mulher nos Açores e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant
Communities, seis volumes publicados entre 2003 e 2008 (Imagem 1), veio dar
voz à mulher migrante nas comunidades lusas da América do Norte, na sua
maioria de origem açoriana.
Imagem 1: Os seis volumes de A Mulher nos Açores e nas Comunidades
Convém, nesta altura, lembrar o destaque, em termos numéricos (Gráfico 1), que
a emigração portuguesa para os Estados Unidos e Canadá merece no quadro dos
variados destinos da história da nossa diáspora.
Gráfico 1: OS PRINCIPAIS DESTINOS DA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA
(Porto de Partida, Porto de Chegada: A Emigração Portuguesa, Lisboa: Ancora Editora, 2003: 18)
Esta coletânea surge na sequência do evento pioneiro, Encontro A Mulher
nos Açores e nas Comunidades (Imagem 2), realizado em 2001, no âmbito do
meu trabalho como Coordenadora da Cooperação da Universidade dos Açores
com os Estados Unidos da América.
Imagem 2: Encontro A Mulher nos Açores e nas Comunidades, de 2001.
Em 2003, por iniciativa das Professoras Manuela Marujo e Aida Baptista, a
University of Toronto, no Canadá, realizou o I Congresso Internacional A Vez e a
Voz da Mulher Imigrante Portuguesa (Imagem 3), dando assim início à dinâmica
bienal da realização dos encontros A Vez e a Voz de dois em dois anos.
Imagem 3: I Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher, de 2003.
Mantendo-se na América do Norte em 2005, a iniciativa atravessou o continente,
chegando à University of California, Berkeley, pela mão da Deolinda Adão, com a
realização do II Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher em Portugal e
na Diáspora (Imagem 4).
Imagem 4: II Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher, de 2005.
Da América do Norte, A Vez e a Voz rumou até outros continentes e academias:
a Universidade de Macau em 2007, a Universidade Federal de Curitiba, Brasil, em
2009, e a Université Paris/Ouest Nanterre, França, em 2011. Dois anos depois,
A Vez e a Voz voltou aos Açores, com a realização da sexta edição, em 2013, no
seio do Centro de Estudos Sociais (CES) da universidade açoriana (Imagem 5).
Imagem 5: VI Congresso Internacional A Vez e a Voz da Mulher, de 2013.
Ao dar voz à mulher migrante nas comunidades da América do Norte,
a coletânea A Mulher nos Açores e nas Comunidades dá a conhecer múltiplas
facetas da cidadania e entrega – à causa própria, através da descoberta e
construção do eu na escrita e na educação. Helena Simas Panzarella, filha de
uma emigrante dos anos 50 do século passado, faz a ponte entre o passado e
a descoberta de uma nova língua e identidade em “Cadernos de uma mulher
migrante: A língua e a procura do sentido da vida” do Volume III (2003, 555-
574). Ao traçar o percurso do nome Maria, no Volume II, a “Crónica das Marias
com Garra, de Toronto, em Maio” de Aida Batista desenvolve um olhar, incisivo e
irónico, sobre a identidade coletivo da mulher portuguesa, dentro e além-fronteiras
(2003, 353-360). No texto “A geografia da minha identidade cultural” do Volume I,
a jovem Carol Ann Gregory descreve a construção da sua identidade como neta
de emigrantes dos Açores, através da escrita da sua tese de doutoramento em
geografia, onde faz um inventário de todos os edifícios e espaços dos numerosos
núcleos comunitários da Califórnia (2003, 191-209).
Como seria de esperar, a mulher migrante assume um papel de grande
relevo na educação, a temática do Volume III da coletânea, como o demonstram
os estudos “A feminização do ensino superior numa comunidade rural da
Califórnia” do Professor Elmano Costa da California State University, Stanislaus
(2003, 575-618), “A importância da mulher no ensino do português nos EUA” de
Emília Mendonça, antiga Coordenadora desta área de ensino (2003, 527-538), e
“As avós e o português: A língua de afeto da diáspora portuguesa” da Professora
Manuela Marujo da University of Toronto, Canada (2003, 539-554). Neste âmbito,
merece destaque o papel primordial da mulher na Educação Especial, tema dos
artigos “Tendências no ensino dos surdos” de Elizabeth Egan (2003, 679-686), “O
meu filho Ronnie: Um desafio e uma bênção” de Theresa La Bonte (2003, 687-
698) e “Voluntárias, a educação especial e alunos luso-canadianos em Toronto”
da investigadora luso-canadiana, Ilda Januário (2003, 665-678).
Os títulos mencionados demonstram claramente como a temática da
educação extravasa facilmente a separação entre o pessoal e o social, entre a
entrega à causa própria, através da construção da identidade pessoal e coletiva, e
a entrega à causa pública, através da participação na construção da sociedade.
No âmbito social, a importância da língua surge de novo. Refletindo o papel fulcral
que a mulher migrante tem na comunicação e no uso da língua do país de
acolhimento – neste caso a língua inglesa – o artigo do Volume IV, “Interpretando
línguas e dores no feminino”, traduz a experiência de Natalie Konarski, intérprete
que faz a ponte entre o português e o inglês na área da saúde (2003, 951-962).
Muitas vezes tão obscura que impede a comunicação, a linguagem legal merece a
atenção cuidada de Laura Basaloco-Lapo, no texto “A mulher e a lei: Entre
Portugal e os Estados Unidos”, também do Volume IV, (2003, 765-772), enquanto
a luta contra o enorme flagelo dos maus tratos no seio familiar é a preocupação
de Maria Manuela Ferreira em “A terapia psicológica no combate à violência
doméstica”, outro artigo do Volume IV (2003, 757-764). Testemunho da
preocupação ambiental das novas gerações, o texto “Uma mulher e o ambiente
nos EUA: Os desafios de sempre”, do Volume VI, dá voz a Deanne Ferreira,
bisneta de emigrantes açorianos, especializada em direito ambiental, que se
empenha no estudo e na divulgação da legislação pertinente para a manutenção
da sustentabilidade económica e ambiental do sector agropecuário californiano,
dominado por explorações de açor-descendentes (2008, 1643-1658).
Debruçando-se sobre a política, tradicionalmente de complicado acesso à
mulher, Alice Clemente, no estudo “As netas de imigrantes: A mulher na política
de Rhode Island”, também do Volume VI, destaca figuras femininas notáveis na
governação local e estatal (2008, 1701-1711), enquanto Donna Miranda, no texto
“A mulher portuguesa no movimento laboral da Nova Inglaterra” do Volume I,
traça a história da intervenção feminina nos movimentos sindicais, dos finais do
século XIX e primeira metade do século XX, nas fábricas de têxteis da costa leste
dos Estados Unidos, durante décadas as principais empregadoras de mulheres
migrantes nesta zona do país (2003, 137-148).
As expressões de cidadania feminina no seio das nossas associações
comunitárias são, e continuarão a ser, um dos grandes alicerces da diáspora lusa,
mesmo que essa ação não seja valorizada, nem mesmo reconhecida. Ao fazer
o balanço da situação da mulher no associativismo das nossas comunidades no
artigo, do Volume V, “Mulheres Migrantes: Trabalho profissional e intervenção
cívica”, Manuela Aguiar, antiga Secretária de Estado da Emigração e fundadora
da Associação Mulher Migrante, destaca a tradicional falta de paridade nas
associações lusas, arrematando que “É na América do Norte que os progressos
são mais notórios. O rejuvenescimento conduz aí, em linha recta, à paridade, o
que não é necessariamente verdade em outros continentes” (2008, 1247-1270).
Focando a temática, no Volume I, o estudo da Professora Deolinda Adão, “A
mulher portuguesa nas sociedades fraternais da Califórnia”, traça uma parte da
história da mulher nas sociedades comunitárias que falta fazer, história em que
figurará, em primeiro plano seguramente, a SPRSI (Sociedade Portuguesa Rainha
Santa Isabel), criada por mulheres e para mulheres em 1889 (2003, 149-172).
Finalmente, de entre a panóplia de áreas de intervenção e expressões de
cidadania protagonizadas pela mulher migrante portuguesa da América do Norte,
e as suas descendentes das várias gerações, surge a área fulcral dos cuidados
ligados à saúde e ao bem-estar, enfoque dos textos “A mulher luso-canadiana e a
saúde: A visão de um médico” de Tomás Ferreira, do Volume IV (2003, 963-974),
e “A mulher imigrante e a vida familiar e profissional: Como lidar com stress”, de
Felicidade Rodrigues, do Volume V (2008, 1203-1218).
Fechando o Volume IV, dedicado à saúde, com duas chaves de ouro, a
veterana Vicky Machado, no artigo “POSSO: Um centro comunitário da Califórnia”,
traça o percurso deste centro de apoio às gerações mais idosas, criado por ela e
colegas da sua geração, no calor dos movimentos ativistas dos anos 60 (2003,
975-982), enquanto a então finalista de medicina, Betty Medeiros, descreve
a clínica de medicina gratuita, criada por ela e uma colega em 2003, no limiar
do século XXI, no artigo “O Programa de Medicina Gratuita OPEN DOOR: Um
sonho tornado realidade” (2003, 983-998). Formada na Escola de Medicina da
University of Massachusetts, Worcester, esta jovem açor-descendente, cujo sonho
foi acalentado pela sua visita ao arquipélago em 2001, para participar no Curso
de Verão da Universidade dos Açores, é um exemplo notável de cidadania no
feminino, dentro e fora da academia.
Obras Citadas
Gubar, Susan (2006), “Feminism Inside Out” in PMLA (Publication of the Modern
Language Association), Volume 121, Number 5, 1711-1716.
Henry, Astrid (2006), “Feminist Deaths and Feminism Today” in PMLA (Publication
of the Modern Language Association), Volume 121, Number 5, 1717-1721.
Martins, Luís Saldanha (2003), “O Fenómeno Migratório e o Desenvolvimento
Português: Causas e Efeitos de um Novo Ciclo” in Porto de Partida, Porto de
Chegada: A Emigração Portuguesa. Lisboa: Ancora Editora, 15-32.
Simas, Rosa Maria Neves (2003), coordenação e tradução, A Mulher nos Açores
e nas Comunidades / Women in the Azores and the Immigrant Communities,
Volumes I, II, III e IV, Ponta Delgada: EGA.
Simas, Rosa Maria Neves (2008), coordenação e tradução, A Mulher e o Trabalho
nos Açores e nas Comunidades / Women and Work in the Azores and the
Immigrant Communities, Volumes V e VI, Ponta Delgada: UMAR-Açores.

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