domingo, 13 de outubro de 2013

ana maria pintora comunicação

Comunicação para apresentar no encontro de expressões femininas
Do passado, que ainda nos traz a memória da mulher doméstica, passando pelo
tempo do discurso da autonomia feminina, temo que hoje, os antigos sonhos dos
direitos e igualdades tenham sido substituídos por uma desregulação da
feminilidade transformando a mulher imagem/corpo numa espécie de negócio
milionário que tudo vende.
Sem conteúdo, usam-nos “ bonequinhas”, quase sempre seminuas. Se noutros
tempos a nossa identidade estava consignada ao “consentimento” masculino,
agora, esta obsessão pelo corpo é aquilo que nos assegura o estatuto social sobre
o outro, sem o complexo do género.
Foi neste contexto e refletindo sobre esta confusão permanente entre ser/pessoa
e ser corpo/imagem que resolvi escrever este texto para partilhar convosco as
inquietações dos últimos 40 anos, uma história de vida lida entre linhas de textos
que fui produzindo para os catálogos das minhas exposições.
A reflexão começou a nascer a partir de uma residência artística na antiga cadeia
de Lagos que servia de base para a produção deste evento. Duas mulheres
percorriam os lugares da cidade: o mercado, a praia, os cafés, as mercearias,
tiravam fotografias, faziam compras, enfim brincavam às férias no algarve.



Apresentaram-se como não imagem, porque não correspondiam aos
estereótipos da moda. Recuperaram do baú as roupas guardadas, faziam os seus
próprios adereços com coisas que tinham à mão. Construíram o figurino negando
as convenções de beleza. A loucura das senhoras era inofensiva, estando mais nas
sugestões que ofereciam, recriando imagens e rituais vividos pelos transeuntes,
que fascinados pediam fotografias, uns porque lhes parecia a avó, outros o
casamento ou a festa, etc. As duas integraram-se pela diferença, pelo excesso,
originalidade e simpatia.



Nesta Performance a comunicação desenvolveu-se não a partir de uma linguagem
comum, vulgar (emissor - recetor), mas a partir de expressões simbólicas que
estão no imaginário de todos nós. O acesso às figuras era simples, quase um



encontro de memórias. Primeiro são os olhos e a seguir o sorriso dos lábios.
Gerando-se um jogo encantatório que recria o lugar que cada um ocupa
socialmente.
O que é ser Mulher?
Quem gosta de quê?
O que é a arte?
O que é a pintura?

Até aí o meu trabalho artístico era uma metáfora silenciosa resguardada, mas em
2000 na carta a júlia revelo uma incapacidade para ser uma artista que segue um
certo modelo instituído de estar no mundo,

e cito; Minha amiga, sei que vais ficar desapontada comigo. Desde que me pediste
para colaborar neste projeto tenho andado às voltas com o pensamento. Quis
propor-me um conceito novo no meu trabalho, realizar uma forma de
intervenção mais próxima das propostas contemporâneas de vídeo e instalação.
Reconheço que tenho visto coisas muito interessantes e também tenho algumas
ideias. Pensei transformar esta galeria numa caixa, as paredes seriam forradas de
panos pretos, o espectador seria convidado a perder-se, sem saber para onde
dirigir o olhar,
Pensei instalar a sala da minha casa e expor o meu vídeo, os meus filmes, a minha
música, as minhas fotografias para sentirmos que a nossa individualidade se dilui
na presença dos outros e que a essência da nossa natureza pode estar noutro
lugar. Pensei apelar à consciência dos grandes problemas do nosso tempo, pedir a


um arquiteto para fazer o projeto para o museu dos detritos, onde fosse
obrigatório tirar fotografias para que os homens se lembrem e recordem aos
seus filhos a porcaria que têm feito. Pensei escrever nas paredes mensagens de
liberdade dedicadas a tamri, a neivisit, a oilande, a meisil e a melike. Pensei
noutras coisas. Como vês ideias não me faltaram. O que é certo é que as
abandonei, faziam-me desanimar, ou por achar que não atingiriam os objetivos ou
por pensar que não eram originais.
 Bem sei que não faço um trabalho muito contemporâneo, apesar de ter nascido
no século XX, passo horas, algumas dolorosas, apenas com a tela, um pincel e as
tintas, a dar cor a uma forma nova, está lá tudo: a dúvida, a cidade, o isolamento,
a loucura, o egoísmo, a destruição, a imagem, mas também a alegria e o encanto
da metafísica a saber a chocolate temperado com nozes .







Sob o titulo “mais vale mudar o figurino do que morrer nas mãos do encenador”
descubro uma espécie de manifesto inquietante sobre a pintura, o mundo e uma
resignação que sei hoje que tenderá a terminar. Leio-vos esta passagem:
Ultimamente, ocorreu-lhe que talvez não fosse artista mas um sonhador
pictórico, um explorador de contos, de pequenas narrativas muito pouco
descritivas mas muito plásticas capazes de sugerir acontecimentos vividos,
metamorfoseados em personagens silenciosas que os disfarçam. Atores sempre
revoltados, habituados a descobrir que a ocultação é propositada como se o
encenador os condenasse ao submundo. É que existir é enfrentar a realidade
dramática de angústias e principalmente da responsabilidade que teima em contar
histórias de amor livre sempre mudas. Se no quotidiano aceitamos que somos
lutadores até ao fim, também o ato criativo é a convicção permanente de que
aquilo que fazemos é não só a possibilidade de intervenção convicta no mundo
como também é sempre uma nova batalha. Fracasso... Falhanço... Festejo..., é o
final com que nos apresentamos.
Sonhadora e atriz agradeço as palavras e fujo para a tela para não morrer nas
mãos do encenador.

 E quem é este encenador? Como conseguiremos ser o que somos sem ser
reféns? Como escapar a esta combinação duplicada de ser mulher, pintar e ser
filósofa na sua própria medida?






 Em retratos para o sedutor há notoriamente uma consciência da inevitabilidade
do domínio do género masculino como guarda de todas as emoções:
” No princípio as sensações transbordavam e os efeitos pressionavam,
 as entranhas remexiam-se e cada retrato retraía-se e inchava, ora desconfiado
ora deliciado. Era uma espécie de pacto: Ele nunca diria aos visitantes que os
retratos não eram cópias e os retratos permitir-se-iam viver como se o parque
fosse deles.
O que é certo é que ali estava para os vigiar, para a vigiar. O guarda do parque era
uma espécie de faroleiro, do seu posto, da fixidez do seu lugar, controlava os
retratos, iluminava-o, guiava-os, protegia-os. Em rondas sucessivas, memorizava-
os, conhecia-os meticulosamente e dava-se conta de recuar até o olhar os captar
em todo o campo de perceção ou aproximava-se tanto que conseguia ver
pequenos sinais que pareciam inquietos sempre dispostos a transmudarem-se.
O guarda do parque era um sedutor. De tanto os olhar transformava-os, aliciando-
os com palavras sem encanto mas firmes na sequência.
Maravilhas de jogos de piscadelas.




A pintura de juventude observo agora era muito mais poética .
 “Da pintura digo possibilidade de sobrevivência, manifestação inconsciente
transformada em realidade de sonho, utopia de desejo, suspensão metafísica
para olhar a eternidade O que é é eterno – pequeno texto escrito em1988.
Livre e simples, conformada em sentido Kantiano. “Pintar como um dever. Pintar
como quem respira”. Nos textos mais antigos há uma tendência para fundamentar
mais o ser pessoa/mulher do que o modo - pintura, a pintura quase gratuita, é
subliminar, disfarçando a vivência feminina. Trinta anos depois, a maturidade,
trouxe a coragem, e, a clarividência permitiu que em “a minha pintura podia ser
uma cotovia” o fundamento da criação se tornasse um todo; -pessoa, obra e
sociedade-, capaz de se auto sustentar, como se a pessoa fosse coisa e como se a
pintura se tivesse tornado atitude e modo de estar na vida.
 Será este o momento da evidência artística?

Transformar a ideia de mulher corpo em mulher pessoa pintura tornou-se uma
exigência e em 2012 escrevia assim:


 A pintura do Corpo – ou a última metáfora é uma refle(xão) - sobre a ocupação do
espaço em pintura e as possibilidades do gesto ao pintar, esse movimento que
nunca se repete.
O corpo é anterior e posterior, habita e despeja o espaço que é a distância entre
mim e a geografia do meu chão. A minha pintura está no corpo que recebe a luz e
o brilho que vem do oriente luminoso mas é a sombra que revela e atua enquanto
a cotovia descansa.
É a sombra que mantém a pintura suspensa entre a natureza celeste e a natureza
terrena.
Para Merleau-Ponty “O espaço e a luz falam através do corpo que sente o
mundo, porque o corpo é sujeito de perceção. Nele se realiza uma constante
comunicação de vivencia reciproca, corpo e mundo”



 Eu que sou corpo vejo campos de interrogação, vejo a luz poderosa que tudo
arrasta e submete para reescrever formas.
É a sombra que recupera o corpo e nos torna “aqui e agora” humanos. É a sombra
que simboliza o dia, que evita a noite. Também a cotovia apresenta o amanhecer,
enquanto o rouxinol chega com o pôr do sol.
 A arte realiza a re-ligação do corpo ao mundo e do mundo a mim. Descobri que a
pintura não é um campo de batalha onde se luta pela imposição de um espaço. Eu
pinto a liberdade.
Tenho pensado que procuro a cisão, a fissura original que se escapa pelo corpo
porque não tem nenhum ou outro modo de se mostrar. É nesta brecha que reside
o meu trabalhar... A tela passa a ser um espaço, de possibilidade sobre a
divisão/intuição, um espaço de disposição, não de imagens, nem cenários, mas da
própria forma de Ser, repleta de existências em mundos mais ou menos
cognoscíveis.


Somente o olhar interessado do pensamento autêntico os pode ver.


Toda a pintura é corpo e todo o corpo traz sombra…A sombra é silêncio. Se
protegermos a sombra nunca perdemos o sentido do corpo, esta projeção é a
fecundação do lugar, do espaço próprio da existência, é o nascimento da
transcendência entre o homem e a natureza numa espécie de ritual iniciático
colorido.
Para Bachelard a cotovia é uma imagem literária pura, o seu voo muito elevado, o
seu pequeno tamanho e a sua rapidez impedem-na de ser vista e se tornar
imagem pictórica. Metáfora pura, a cotovia transforma-se, portanto, em símbolo
"de transparência, de dura matéria, de grito.
Acreditar na pintura é uma reorganização permanente de metáforas sempre
endividadas, sempre reféns do corpo e do pensamento…". E o filósofo cita o poeta
Adolpho Rossé : "E depois escutai: não é a cotovia quem canta... é o pássaro cor
de infinito";
Eu que sou corpo, pinto a cidade, sem muralhas, de azul de possibilidades, pinto
as realidades vitais, cheias de fogo e vento.
Eu que sou corpo e pinto, sou mais verdade que beleza, Mais desejo que verdade.
Mais torre que transformação, tomo conta da passagem e crio a abstração.

Eu que sou corpo e pinto quero vos dizer que os sonhos estão nas mãos e tomam
a direção do corpo. É uma sustentável imperfeição.
Eu que sou corpo e pinto quero-vos falar desta maneira de não fazer guerra. Dizer-
vos que trago até aqui a terra resguardada, a terra fina, a sensibilidade e o
equilíbrio.



Eu que sou corpo e pinto peço-te que sejas paciente porque não imito nem a
natureza nem o mundo. Apenas escrevo formas distraídas de movimentos que
existem no meu corpo .
Eu sou daqui desta zona, da mulher mãe, perto do mar que não espera pelas
ondas quando o nevoeiro se afasta.
Eu que sou corpo e pinto, tenho as mãos na areia macia, sou do tempo da
sombrina, dos artistas que transformam a dor.
Eu que sou corpo e pinto tenho as paisagens nos olhos, na cerimónia do chá.
 Quero que a minha pintura mostre que o corpo não tem imagem é apenas
metáfora, que o corpo é alma, embrulho original, para que quando aberto, se
tornar a matriz de todo o espaço existente da tela-mundo.
.
A pintura serve-se do corpo……. Está numa reserva das minhas mãos…… habita os
meus olhos os meus lugares ….. e..tu, por vezes, quando olhas, apenas vês o corpo
porque não tens os olhos habitados de poesia nem vês as imagens desenhadas
nas mãos. Tu que olhas o corpo tens que ver o fio que liga as cores para depois os
desatares e encontrares a plenitude da abstração …… Tu que te delicias reclinado
nas imagens - esquece-as, esconde-as, separa-as, detracta-as e vais ver que num
simples ponto, num sinal encontrarás muitos outros mimos, estimulantes….
Hilariantes……. Longos….. pequeninos……curtos…… engraçados…… direitos…….
Coloridos……. Expressivos……… imitados……… sentidos….


“….. cor de ascensão... um jacto de sublimação... uma vertical do canto... uma
onda de alegria.
Só a parte vibrante de nosso ser pode conhecer a cotovia”. G.Bachelard

Apesar de mundo culturalmente ser tão diverso e serem muitas as clivagens entre
os seres . Ser pessoa talvez se tenha tornado mais importante do que abraçar
outras causas, pelo menos, para algumas de nós…….mas a diáspora continua,
noutras viagens e por outros fins.






Aqui fica esta espécie de embalo da alma, da mulher que ainda tem muito que
pintar. Na realidade, não somos nada e orgulhamo-nos tanto do que somos.
 Afinal conseguimos crescer!

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