quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Sobre as Academias do Bacalhau

As Academias de Bacalhau estão hoje espalhadas no mundo, como
verdadeiros padrões de presença portuguesa, cumprindo uma  vocação
matricial de convivialidade, que vem marcando o seu trajecto  de
várias décadas, sempre a irradiar alegria, a expandir a nossa cultura
e os nossos costumes, a oferecer solidariedade a quem precisa.
A ideia que lhes deu origem é, em si mesma, uma ideia felicíssima e
singular: partir de uma simples tertúlia de amigos, reunidos num
almoço habitual, e juntar-lhe - numa fórmula que faz toda a diferença
- as componentes essenciais da cultura e da beneficência.
Mas por muito interessante que fosse este "achado", ao colocar uma
forma de associativismo lúdico ao serviço dos mais nobres objectivos
da sociedade, os seus autores não terão, com certeza, imaginado a
assombrosa aventura humana em que haveria de se traduzir!
O mundo da Diáspora portuguesa era formado por um sem número de
comunidades engendradas pela mesma vontade de preservar a
identidade nacional e de conservar os laços afectivos de ligação à Pátria, mas
que, não obstante o que as unia, permaneciam distantes e
incomunicáveis entre si.
Era preciso dar um passo em frente para formas mais englobantes de cooperação
 entre  instituições congéneres, entre Portugueses dispersos no espaço
geográfico
 dos cinco continentes. Uma meta que, face à experiência do passado, parecia
inatingível. Seriam os portugueses, ao invés de tantos outros povos
europeus da emigração, definitivamente, avessos ao envolvimento num
amplo movimento de
convergência? As Academias do Bacalhau  vieram  provar que não. Ao longo
de mais  de quatro décadas, mostraram tanto uma enorme capacidade plástica
 de se moldarem à situação e características das sociedades em que se inseriam,
como uma surpreendente facilidade de vencer as distâncias geográficas,
estabelecendo
 a ligação permanente entre todas, pontuada por congressos mundiais,
que juntam centenas
 e centenas de "compadres", em sessões de trabalho e em convívio fraterno.
Do acolhimento se encarrega, com invariável eficiência, a Academia anfitriã.
Este movimento converteu-se, assim, em paradigma de diálogo e articulação de
projectos a nível intercontinental, e é também o único actuante, em simultâneo,
com o mesmo espírito e as mesmas regras, na Diáspora e em Portugal.

E pensar que tudo começou, em Março de 1968, num restaurante de Joanesburgo,
durante um almoço oferecido por quatro amigos a Manuel Dias, o mítico
jornalista
portuense!
 Aí surgiu a ideia, segundo nos conta o fundador e presidente
honorário das Academias,
Dr. Durval Marques. Depois, os quatro (Dr. Durval Marques, Eng.º José Ataíde,
Ivo Cordeiro e Rui Pericão) suscitaram adesões e trabalharam em
conjunto para dar
configuração ao projecto, definindo os princípios informadores, as
particularidades
 e formato original da futura agremiação. A Academia do Bacalhau de
Joanesburgo seria
 lançada logo a 10 de Junho desse ano, durante a primeira grande
comemoração do Dia
Nacional na capital do Gauteng. Estava bem gizada e pronta a dinamizar acções
mobilizadoras em seu redor, com o seu exemplo, promovendo,  a disseminação das
Academias em outras cidades.
A designação "Academia"  não tem conotações elitistas - as regras  de tratamento
 no seu interior excluem, aliás, o uso de quaisquer títulos
universitários ou profissionais -
antes apela à camaradagem, à união, sem excluir a dose certa de
irreverência, que quadra
na perfeição com  as praxes e rituais adoptados, a fazerem lembrar os
das nossas
organizações académicas, sobretudo as do Porto, do Orfeão
Universitário,  de onde vem
 o "gavião de penacho", que se canta em coro, em momentos altos.
A "Academia-tertúlia" não tem sede, o seu património são as pessoas, que podem
 reunir em qualquer lugar, à volta de uma mesa de restaurante, em
frente a um prato
 de bacalhau, "o fiel amigo". A focagem na amizade revela-se, igualmente,  na
denominação de cada um dos seus membros: " compadre",  sinónimo de "melhor
amigo", aquele que se convida para padrinho dos filhos. Ali não há
"doutores" todos se
tratam, familiarmente, por "compadres". As suas mulheres, as chamadas
"comadres", desde sempre, estiveram presentes nas festas especiais,
como convidadas,
não inicialmente como sócias.
Este é um aspecto que não gostaria de omitir, e que, do meu ponto de
vista, deve ser
situado no seu contexto histórico. A génese da tertúlia de Joanesburgo
explica "de per si"
 o "porquê" da estrutura ser, na origem, exclusivamente  masculina, e
afasta a hipótese de
qualquer intenção deliberadamente discriminatória: eram os homens que
conviviam, entre si,
na pausa de trabalho, ao almoço. As mulheres, simplesmente, não estavam lá, não
partilhavam o mesmo círculo de actividades ou de camaradagem
profissional.  Por isso,
quando essa factualidade se alterou, com as mulheres a surgirem, lado
a lado, com
os homens no campo profissional ou associativo, foram sendo admitidas,
  em muitas das Academias, como filiadas de pleno direito, e logo as vimos
 em lugares de direcção ou  mesmo na presidência, por exemplo, em
Toronto, na Nova
Inglaterra, em Brasília.  O que não tem paralelo em outros ramos do
nosso associativismo
mais antigo e tradicionalista.
Refiro-me ao acesso em massa das mulheres, que aconteceu,
primeiramente,  em países,
onde a igualdade de género era mais conseguida. Mas, de facto, a
título excepcional,
algumas senhoras haviam sido, muito antes, admitidas, como membros da
Academia Mãe de Joanesburgo, mulheres de Artes, de Letras, como Amália
Rodrigues (a primeira de todas), Vera Lagoa, Graça Sousa Guedes, ou
oriundas da política, como eu mesma. Aceitei, com entusiasmo, esse
estatuto por um lado, porque
estava ciente da importância de abrir precedentes e confiava  na
capacidade de ajustamento
 daquele modelo organizacional a uma realidade em evolução, (não só,
mas também, no
que respeita à colaboração igualitária de mulheres e homens) e, por
outro lado, porque
 admirava as Academias e acreditava nas suas virtualidades de fazerem
coisas cada vez mais
 extraordinárias.

 O  lugar ímpar e cimeiro a que as Academias ascenderam no universo da
emigração,
 ficou, evidentemente, a dever-se à qualidade dos seus dirigentes. Tanto os
pioneiros, como os que lhes sucederam eram (são!) líderes de larga visão,
conhecedores da importância de conjugar esforços para consolidar e engrandecer
verdadeiras comunidades em terra estrangeira. Sabiam bem que estas
podem datar o
seu nascimento e formação do início do associativismo.  Podem mesmo, a meu ver,
sintetizar a sua história  numa glosa lapidar: "Associo-me, logo
existo".   Este poder criador
 e estruturante de comunidades, em sentido orgânico, está, de há
muito, estudado e definido
  e é corrente distinguir,  de acordo com as finalidades principais,
as instituições
de assistência e solidariedade, as agremiações de fins culturais, os
clubes e centros
 e recreativos. Todavia, as Academias do Bacalhau escapam a essa
divisão clássica,
devido ao ecletismo e pluralidade dos seus fins e à singularidade dos
meios utilizados
 para lhes dar cumprimento. Conseguem ser, do lado da Diáspora, um elo de
ligação à Pátria, e, também, a partir das Academias existentes no nosso país,
um meio de compreensão  e de convivência ecuménica  com a Diáspora.
 Há, entre os seus membros muitos emigrantes ou ex-emigrantes,
considerados, justamente,
“gente de sucesso” É excelente lembrar o percurso individual de cada
um,  mas sem
esquecer o que tende a ser mais subestimado: as suas realizações colectivas..
 Um longo relacionamento com as comunidades, leva-me a acreditar no papel
insubstituível do associativismo, em que vejo," um ímpeto de
Portugal", de que falava
Pessoa - o ímpeto que despertou para a acção concreta  os fundadores
das Academias,
no sul da África, e, depois, um pouco por todo o lado, em instituições
que avançaram  e
cresceram à medida dos desafios com que foram deparando.
Julgo que o processo de descolonização de Moçambique e Angola, e, com ele, a
necessidade de valer a dezenas de milhares de refugiados, foi um dos
factores decisivos de
 uma rápida evolução para patamares  de actuação cada vez mais
elevados, com a criação
da Sociedade de Beneficência de Joanesburgo e do Lar Santa Isabel,  na
segunda metade
 da década de 70. Um passo de gigante, que centrou a acção das
Academias definitivamente,
 na acção humanitária.
E o regresso, em grande número, da África do Sul, anos mais tarde,
terá sido determinante
 na constituição de novas Academias no nosso próprio País. Os
"compadres" retornados
trouxeram consigo a saudade de África e a determinação de retomar o
convívio e o trabalho
beneficente, em terras portuguesas.
O Porto foi uma das primeiras cidades do país em que isso aconteceu -
como não poderia
deixar de ser,  já que, através de ilustres portuenses, havia  estado
presente em Joanesburgo,
no momento verdadeiramente genesíaco, e em todo o processo em que tão
grande aventura
se veio a desenvolver. E bem pode dizer-se que a imagem de marca da
cidade - força de
trabalho, poder de iniciativa, extroversão  da alegria de viver - se
evidencia, hoje, na
dimensão e no dinamismo da sua Academia.
A fase seguinte foi a de expansão em novos destinos  da Diáspora, o
que nos leva a
perguntar:  e agora, que futuro para as "Academias"?
 Em tempo de crise sem  fim à vista, num ponto de partida de grandes
vagas migratórias
- a chamada "nova emigração", fenómeno recorrente em Portugal, em ciclos que se
encadearam, inparavelmente, nos últimos cinco séculos - quantos
desafios vemos pela frente!
É o momento de pormos nas Academias do Bacalhau as maiores esperanças, apostando
na sua experiência para enfrentar conjunturas difíceis e, como é da
sua natureza, fazer
história em gestos de solidariedade e simpatia.
Afirmação que avançamos, de caso pensado, com segurança, pois estamos
a falar, afinal,
naquele que se transformou no mais moderno e dinâmico movimento de união dos
Portugueses do mundo inteiro.