Marília Patela Bação
Estamos
no início de 2013 e os tempos que correm assim como a conjuntura do nosso país
e da Europa têm-me levado cada vez mais a pensamentos que perturbam a minha paz.
Sou mãe, filha, irmã e esposa. Tenho uma profissão com a qual me identifico e
que exerço há quase trinta anos. Nasci em Portugal e fui muito jovem para
França nos anos 60 e vejo-me agora a pensar na força que terá sido necessária
aos meus pais para saírem deste país à beira mar plantado. Penso no mesmo
esforço que terão feito tantos outros portugueses que decidiram rumar ao
futuro, refazer a sua vida por si e pelos seus filhos. Contudo, por muito que
tente pensar que o melhor seria sair e emigrar, contínuo a não querer deixar
para trás as raízes que tanto me custaram a criar. Se pensar em mudar de cidade
dentro do país já levanta problemas, mais problemas levantará, inevitavelmente
(re) construir uma vida noutro país que não na Europa. Tenho visto concursos,
falado com colegas e tento, pouco a pouco, equacionar qual será a melhor
postura e qual será a decisão mais sensata a tomar. Mas as incógnitas são
muitas. Estamos na era da mundialização, estamos numa época de mudanças
vertiginosas, tanto económicas como sociais. Sinto-me, talvez como todos nós, à
beira do precipício. À beira de um precipício que me atordoa tanto mais porque
nele não estou só e tenho consciência que o passo que der arrastará
inevitavelmente a minha família. Recuar? Avançar? Os meus filhos estudam e
precisam de um futuro. Mas que futuro será o deles? Que futuro está para vir?
Ficar? Partir? Para onde? Quanto Tempo? Em que condições? A decisão sendo tão
dura e difícil de tomar, resta-me mergulhar no meu passado e relembrar, de
entre o que remanesceu, os vestígios do passado aquando dos 14 anos que vivi no
Norte de França e tentar encontrar algo que possa contribuir para a tomada de
decisão.
As
memórias misturam-se, fundem-se, confundem-se e confundem-me. Às imagens que
persistem na minha memória, sobrepõem-se ou acrescem às dos relatos dos meus
pais, da minha irmã e dos tios e primos que acabaram por ficar na mesma cidade
onde morámos. Mas a perspetiva do que eu hoje sei e sinto da emigração já não
se cruza apenas com a visão dos que, na época e ainda hoje, me são próximos:
Está imbricada em outras histórias, outras vivências e visões: do meu marido,
dos meus sogros e cunhado, dos amigos dos meus pais, de tios que foram para
Africa, para o Líbano e até de colegas que vieram recentemente de Díli e de
tantos outros...
E
é com esse olhar sobre o passado, sem esquecer o objetivo presente, que recordo
o que foram esses anos que deixaram marcas profundas não só em mim como em
todos os que, tendo emigrado, se deixaram marcar por outra cultura, tornando-se
pessoas diferentes que acabariam por marcar, por sua vez, os que os rodeiam.
Não
restam imagens nem memórias da viagem de comboio que a minha mãe recorda
penosamente: malas pesadas que ela tinha de transportar e que eu, devido à
minha tenra idade, ficava a guardar enquanto ela estava no seu vai-e-vem logístico,
angustiada por me deixar sozinha em solo não português. Imagino-a com o seu olhar
perscrutante, tentando não me perder de vista, ansiosa e veloz para rapidamente
estar perto de mim. A minha mãe é uma mulher de fibra, uma vencedora, não é
fácil demovê-la dos objetivos que define. É uma lutadora, uma leoa. O meu pai é
mais calmo, brincalhão, trabalhador, meigo e um pai como todos nós gostaríamos
de ter. As regras têm de ser cumpridas mas existe espaço para brincar. Com a
mãe as coisas eram bem diferentes. Penso que será ou seria assim com quase
todas as mulheres que tiveram de emigrar: pensar nos filhos, lutar muito para
mais tarde voltar a Portugal; a brincadeira era um acessório, um luxo que teria
de ficar para depois. Só a via descontraída quando vínhamos de férias. Durante
o ano era a formiguinha que trabalhava, trabalhava e trabalhava e, ao chegar a
casa, continuava a trabalhar. Os homens cumpriam o seu horário de trabalho,
faziam uns biscates mas em nada ajudavam nas tarefas domésticas, que, na época,
eram muitas. Basta pensar no simples facto de lavar, por exemplo, lençóis à
mão.
Da
minha chegada a França resta-me uma única imagem: na noite, lá em baixo, muitas
luzes a brilhar. Mais nada. Recordo o apartamento, estarmos só os três, o frio,
a neve e a escola. Da pré-primária tenho recordações estranhas: o cheiro do
leite quente que tínhamos de beber e que eu abominava, o recreio, o cheiro das
tintas nos nossos desenhos, os corredores, ouvir histórias e, fundamentalmente,
o primeiro dia na escola. Desse primeiro dia, ficou a imagem dos muitos meninos
à minha volta falando uma língua que desconhecia, dizendo palavras estranhas
que finalmente acabei por perceber: “Comment tu t’appelles?”. Para mim isso era
“como-te a pele”. Tinha medo. Eles eram muitos, estava insegura e eles queriam
comer-me a pele. Disse à minha mãe que não acreditou em mim e foi necessário a
ida de uma vizinha espanhola à escola para esclarecer o qui pro quo e acalmar as minhas ânsias. Ela tinha razão e os meus colegas
não eram nenhuns canibais. Ambientei-me, fundi-me, pouco a pouco, na nova vida
e cultura e cresci. Não me recordo de quando comecei a falar francês. Lembro-me
do meu pai a falar fluentemente e da minha mãe ter um ligeiro sotaque. Quando e
como aprenderam a língua? Quanto tempo demorou? Não sei e se calhar nem eles
sabem. Quando se vai para um país estrangeiro, é tão fundamental a comunicação
que qualquer ser humano desenvolve as competências linguísticas rapidamente
para poder comunicar pelo menos oralmente. Deve ter sido o que aconteceu com
eles. Sei contudo que a aprendizagem não foi fácil e narram episódios tão
caricatos como o meu. Mas, se a língua é uma barreira incontestável, creio que
o choque das culturas a supera de longe. Recordo as palavras do meu pai dizendo
que era uma pouca-vergonha os namorados estarem aos beijos no meio da rua e que
não era isso que ele queria para as suas filhas. Como se sentiam eles quanto a
esta outra vida? Que sacrifícios tiveram eles de fazer para rumar para um país
diferente, sem conhecer a língua, a cultura e os hábitos? O meu pai que, como
tantos outros homens, não sabia cozinhar, teve de aprender que os feijões se
punham de molho antes de ir para a panela. Ele que é tão brincalhão, recorda
frequentemente e apenas episódios engraçados e ainda hoje, quando lhe dizemos
que está frio e lhe pedimos para se proteger mais, ri e diz-nos que frio sentiu
ele nas obras em França. A minha mãe, tal como referi, levava o dia a
trabalhar. Dia e noite. Fez limpezas de casas, de escritórios, tricotava para
fora e acabou por trabalhar numa clínica como enfermeira auxiliar. Dos emigrantes
que conhecíamos, fomos talvez os que melhor se adaptaram embora mantendo as
raízes: os filhos não foram trabalhar aos 16 anos mas continuaram a estudar
para prosseguir estudos, compraram casa própria em França e Portugal e fizeram
um bom pé-de-meia. Não foi fácil e compreendo o quanto se tiveram de
sacrificar. O círculo de amigos era muito reduzido. Só passado uns meses veio
uma tia para França, e depois outra e outra: uma irmã do meu pai e duas da
minha mãe. Deve ter ajudado imenso a suportar a vida de trabalhos que levavam.
Quando terminei o 12º ano já havia muitos portugueses e já eramos tantos que o
meu pai e alguns amigos já tinham formado uma Associação de Portugueses que
permitiu ajudar tantos emigrantes nos seus diversos problemas e ainda conseguir
garantir formação escolar ao nível da 4º classe para os seus filhos
independentemente da sua idade e da escolaridade francesa. Era nesse espaço que
muitos portuguese -principalmente homens- se encontravam e tentavam recriar um
pouco de Portugal. Foi assim que conseguiram espetáculos com artistas portugueses:
ilusionistas e até Amália Rodrigues, que conseguiram trazer até Soissons. A
associação ganhava força assim como a comunidade portuguesa. Mas a par dessa
força de Portugal naquele local, outra força contrária emergia: a influência
francesa nos filhos dos emigrantes deixava marcas irreversíveis e levava, cada
vez mais, famílias inteiras a ficar por terras alheias. Quem conseguisse
trabalho, quem arranjava namorado ou marido acabava, geralmente, por lá ficar.
A irmã do meu pai continua lá e os meus primos jamais virão viver para
Portugal. As irmãs da minha mãe regressaram embora já só na idade da reforma ou
porque a filha, criada por nós, estava connosco em Portugal. Quando encontro os
meus primos de França, recordamos as nossas peripécias de infância e de
adolescência, os momentos em família e, cada vez mais, falamos das nossas vidas
agora, dos projetos, dos filhos. Enveredámos por caminhos diferentes mas
une-nos o mesmo sentimento de termos sido portugueses lá fora. Agora eles já
não sentem o mesmo, estão mais do que integrados e são quase mais franceses do
que portugueses. Têm o cuidado e o carinho de trazer os pais a Portugal pelo
menos uma vez por ano e de ver os olhos deles brilharem ao estar de novo em
solo português, de novo na cidade que os viu nascer, de novo à beira mar, de
novo perto dos seus. Mas vêem também os olhos toldarem-se de lágrimas no
momento da partida, o sofrimento ao ver os irmãos doentes que acabaram por
partir e ao pensar que esta será talvez a última vez que os verão. Não é fácil
sentir que somos a razão pela qual os nossos pais estão tão divididos. Não é
fácil sentir que somos a razão pela qual eles tanto se sacrificaram e
abandonaram a sua família. A razão pela qual viveram espartilhados entre dois
mundos tão diferentes. E, por muito que também pontualmente tenhamos sentido o
mesmo desde a escola primária até ao final dosa nossos estudos, não podemos
deixar de nos orgulhar na sua capacidade de mudar, de arriscar, de partir para
fora e de regressar passados tantos anos. Sim, este também constitui um
problema: regressar é também quebrar outras raízes quando se permaneceu longos
anos num país e é ter o sentimento de estarmos a arrancar novamente os nossos
filhos aos hábitos por eles criados.
Regressar
a Portugal, para os meus pais, era concluir um ciclo de vida para iniciar outro
que se idealizava doce e fácil. Não foi. Um país muda muito em 16 ou 20 anos.
Portugal dos anos 80 nada tinha a ver com Portugal dos anos 60 que estava vivo
na memória dos meus pais. O choque cultural foi imenso e tiveram dificuldades
em evoluir num país tão diferente. A liberdade imperava e o que eles
consideravam impensável em Portugal já era banal. O olhar que tinham sobre
Portugal nos 30 dias de férias anuais não lhes permitia abranger a totalidade
das mudanças, de tal maneira estavam ávidos de estar com a família, saborear o
sol, a cidade, a praia e o descanso. O tempo voava e à alegria e lágrimas da
chegada davam lugar a angústia, tristeza e lágrimas da partida. A bagageira do
carro que vinha cheia de eletrodomésticos e produtos franceses, levava agora os
bens preciosos que lhes pudessem recordar Portugal. Só quem não emigra ignora a
importância de ter alimentos portugueses, de ter uma penca pelo Natal, um
pastel de natas, um caderno pautado dos nossos com capa preta. Só quem já
emigrou se angustia com a hipótese de voltar de ter a emigrar…
Na
era da globalização e da mundialização, na era das tecnologias de informação e
de comunicação, na era em o skype e
outros mais meios de comunicação encurtam as distâncias e nos permitem ouvir
vozes familiares e ver caras queridas ou conhecidas, na era em que o Facebook nos permite partilhar tanto,
assistimos ao desmoronar do espaço para acreditar que Díli, Maputo, Cabo Verde
são já ali, ao virar da esquina. Mas não são. Ficam longe, muito longe. E nem
sempre o que pode ser dito virtualmente tem o mesmo peso e força do que um
olhar verdadeiro, do que um toque real, do que um beijo. Emigrar é partir
tentando manter um pouco de si no lugar que nos viu nascer ou crescer, mas
emigrar não pode nem deve ser desistir da família para quem se faz esse
sacrifício. Não deve ser fazê-los sofrer connosco no momento da partida e no
momento do regresso. Emigrar é doloroso e complexo. Emigrar implica perder,
ganhar, voltar a perder e a ganhar. Emigrar agora, será necessariamente
diferente do que foi nos anos 60, pelo menos para aqueles que têm estudos. Mas
emigrar é sempre um passo para uma incógnita que, para quem já foi emigrante, é
inquietante: que alterações trará para os meus filhos, meus pais, minha
família? Levá-los e obrigá-los a deixar a família, os amigos, a escola, a
rotina? Deixá-los e ir perder os bons e maus momentos? Não estar presente
quando precisam de nós? Não estar presente quando caem ou triunfam? E os nossos
pais? O que pensarão eles? Que somos cobardes porque não tivemos coragem de
partir? Que somos corajosos porque tivemos coragem para ficar? Que o esforço
que fizeram foi em vão? Que deveriam ter ficado no país para onde emigraram?
No
momento em que fecho este texto mais questões se colocam. Mais dúvidas. Mais
hesitações. Relembrar o passado catapultou para o presente problemas sentidos
outrora e sentimentos pelos quais não sei se quero que a minha família passe.
Sei que ficar ancorada no passado não me permitirá antever o futuro e muito
menos ainda ter força e coragem para avançar. O que tenho a perder? O que
poderei ganhar? Que mal ou que bem farei a quem me acompanhar nesse caminho que
apenas se vislumbra entre a bruma das hipóteses, das dúvidas, do passado, do
presente e do futuro? O que dirão daqui por uns anos, os meus filhos, a minha
família, os meus amigos? Qual será o alcance da decisão tomada, adiada ou por
tomar? Quais as consequências na vida dos que me são essenciais? Escrever estas
linhas é ter consciência do mal que se pode fazer. Do erro que se pode
incorrer. Do flagelo ou da bênção que poderá ser a partida. Neste momento em
que exponho o meu pensamento, a “vida” dos meus familiares e os seus sentimentos,
num momento intimo eventualmente catártico, uma única pessoa tem acesso à sua
leitura. A minha irmã, companheira na emigração passada e eventualmente futura.
Talvez ela possa dar outra visão. A sua visão sobre o percurso vivido. Uma
visão que só poderá ser enriquecida se outros partilharem a sua experiência e
derem voz aos seus sentimentos, à sua vida. Uma voz que neste momento se torna
necessária e fundamental para tomadas de decisão. Uma voz que os que pensam em
partir precisam de ouvir. Que também eu preciso de ouvir para saber que o meu
sentir não é único. Urge que vozes rasguem o silêncio do que foram anos de
vivência noutro país, da vergonha que é querer falar e não conseguir. Querer
perceber e não ser capaz. Esforçar-se na escola e nunca alcançar objetivos de
excelência. É preciso dar a conhecer o que é a vida de homens, mulheres,
crianças e jovens que tiveram de partir. Mas também urge expor os problemas que
terão ao regressar. O desconforto de não ser nem Português nem Francês. O
desconforto de não saber o que fazer, o que dizer, e preferir frequentemente optar
pelo silêncio, pela discrição total. Pelo apagar ou recalcar parte de si por
nunca se sentir confortável. Mas é também ter capacidade de melhor perceber os
outros. Aceitar as diferenças. Tentar sempre ajudar. Questionar sempre a
atitude de alguém e arranjar desculpas pelo que ela ou ele fez. Será isso ser
europeu? Será isso o que serão os cidadãos do mundo? Estaremos prontos para
assumir esse facto? Para pagar a fatura de ter raízes multiculturais e
multifacetadas que, se muito nos enriquecem, também muito nos magoam? Outros
darão o seu sentir e o seu parecer. Anseio ouvi-los. Anseio eu e tantos outros
como eu….
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