CRISTINA MAYA CAETANO
ESCRITORA, POETA, ARTISTA PLASTICA, ILUSTRADORA.
LUANDA (ANGOLA) – LOURENÇO MARQUES (MOÇAMBIQUE) –
CEREJO. PINHEL. AVEIRO (PORTUGAL)
Nascida em Luanda,
Angola, com apenas uns tenros seis meses, mudava de país. Os meus olhos nunca
chegariam a contemplar a minha terra natal. Apenas me recordo de Lourenço
Marques (atual Maputo), Moçambique, onde foi batizada e vivi uma infância
feliz. Ainda presentemente, inspiram-me as corridas e as aventuras de triciclo
em que insistia em chocar contra as árvores e esmurrar os joelhos. As bonecas,
que adorava vestir e despir, ao mesmo tempo em que da varanda do andar em que
morava espreitava quem passava. O kukuana, o homem velho do saco, onde colocava
as crianças que não se portavam bem e as levava com ele. A luz do dia, as cores
da terra, os cheiros, a alegria das pessoas, o sol grande e vermelho. A praia
com areias finas e brancas e a água do mar quente, onde caminhava com a água a
bater-me nos tornozelos. As comidas, como o frango à cafrial, o chocol (espécie
de mousse de chocolate em lata), as gomas e os chocolates sul-africanos. O
ringue de patinagem artística, onde sonhava aprender a patinar e a dançar com
tutus vestidos. O drive in onde com a
minha família assistia ao ar livre, dentro do carro aos filmes do Trinitá,
bebendo coca-cola e trincando pipocas. As matinés, a leveza das roupas e o pé
descalço. “O casamento dos macacos”, apelidado ao tempo de sol, interrompido
por uma repentina queda de chuva, onde imaginava uma idílica e pormenorizada
cerimónia. A fruta sumarenta, como a manga, papaia, mamão e diversos outros
sabores tropicais. O Natal, com uma grande e enfeitada árvore de Natal coberta
de grandes presentes. As passagens de ano com pessoas nas varandas e carros a
apitarem saudando o ano novo.
Sim, foi uma infância
feliz! A cultura daquele país africano, na altura solo Português, pulsava
dentro de mim, quer no meu respirar, batimento cardíaco, ou na génese das
minhas células. Eu estava em África e África estava em mim. Mal me apercebi que
se instalava a guerra colonial. Até outubro de 1975 convivi com ela de perto.
Metralhadoras, Frelimo estavam por toda a parte. Na escola, nos semáforos, nos carros,
na praia. Restava-me o pátio da minha casa para brincar e andar de bicicleta.
Por vezes tínhamos de fugir a rusgas. Os meus pais estavam comigo, sentia-me
protegida e na minha terra. Até que aconteceu o imponderável - a fuga para
Portugal. Tinha sete anos. Iria continuar a escola primária, em Cerejo, na
aldeia do meu pai, onde os meus avôs me acolheriam junto com o meu irmão de
nove anos. Nada conhecia de Portugal. Apenas sabia que tinha lá família,
estranha para mim.
Era uma tarde fria,
invernosa, quando chegámos, sozinhos, amedrontados ao aeroporto da Portela,
Lisboa. Os parentes esperavam ansiosos com uma fotografia na mão. Os meus pais
tinham-lhe enviado previamente para ser possível o reconhecimento. Sem os meus
pais por perto, pouco mais do que isso me interessava. O meu mundo acabara de
ruir. Nem as compras para uma indumentaria adequada me entusiasmavam. Kispos,
botas, casacos, camisolas de gola alta, eram-me totalmente desconhecidos. Nem
sabia para o que serviam. Salvou-me uma ida ao jardim-zoológico, com uma prima
que também tinha fugido de Moçambique e que em boa hora foi ter connosco. Um
rosto conhecido, num completo mundo desconhecido!
No dia seguinte, a
ida para a aldeia (Cerejo) começou. Chovia, nevoeiro cerrado. As curvas e
contracurvas numa direção destra (em Moçambique, conduzia-se pela esquerda)
assustavam-me, numa admiração ingénua de quem estava habituada a terrenos
planos. Pelo caminho ia-me imaginando vestida com saia de palha, pé descalço,
pilão na mão, morando numa palhota. Uma casa grande de pedra, com uma escadaria
infinita e uma lareira acesa, não estava em nenhum dos meus sonhos. Era de
noite e o fogo desplotou as minhas lágrimas até à exaustão. Salvou-me a
brancura da neve na manhã seguinte. Os animais dos meus avôs, cães, cabritas,
égua, amorteciam o choque. Os dias foram passando lentos. Depressa percebi que
os valores e costumes culturais eram por demais distintos aos que estava
acostumada, e por isso não os reconhecia. As idas constantes à missa, o
trabalho no campo, os carros de bois, a alimentação, a lavagem da roupa na
ribeira, o tricot, os cântaros de água. Uma dimensão planetária esquisita!
Os meus avôs, e a
aldeia esforçavam-se. Sentia uma certa proteção de todos e até tinha uma
amiguinha, que morava do outro lado da rua. A minha professora primária ia-me
buscar e levar a casa dos meus avôs e estava sempre por perto quando chorava
sem parar. Uma autêntica Fada Madrinha. Os meus pais visitavam-nos quando
podiam. Numa dessas desejadas visitas, surgiu a minha primeira grande alegria:
o meu pai trouxera de África, o Quico, o meu cãozinho, um lindo Lulu da
Pomerânia. Senti como se um bocadinho de mim se tornasse a reunir no meu
coração. Foram meses mais alegres, mesmo quando o Quico se perdia e aflita o
procurava. Ele era o meu elo perdido. Um dia desapareceu. Delicerado por entre
as rodas de um trator, nunca mais o vi. Quisera eu ter morrido com ele... A
minha avô materna também já se tinha juntado a nós em Cerejo. Depressa percebi
a sua amargura e o meu mundo fechava-se cada vez mais. Volvido mais de um ano,
foi a vez da minha mãe regressar de Moçambique. Ah, como aquele foi um momento
feliz! Uma nuvem macia girou em meu redor, num aconchego maternal.
Completados dois
anos, o meu pai instalou-se por fim em Portugal. A minha família estava
reunida. Fomos viver para Pinhel, onde iria fazer a 4.ª classe. A procura de
emprego, de casa, os contendores com alguns móveis que o meu pai conseguira
trazer a ocuparem os terrenos da casa dos meus avôs, a ajuda aos refugiados e
retornados convertidos em leite em pó, ovos em pó, roupa e agasalhos
fervilhavam no meu cérebro. Mas agora tinha os meus pais, só que já tudo era
diferente. Tornei-me uma criança triste, delicerada com paludismo, fechada,
revoltada. A própria interioridade da terra condicionava limites para quem
queria se expandir e ser uma alma livre. Valeu-me a frequência da escola,
ingresso nos escuteiros, situações próprias da vida, que me levaram a aprender
novos costumes, criar defesas e uma compreensão própria ao que me rodeava.
Quando entrei em
Gestão em Lisboa, fiquei radiante. Encantava-me ser numa cidade grande (ao
estilo de Lourenço Marques que eu guardava com devoção nos meus sonhos). Quis o
destino que também tivesse entrado no mesmo ano na Faculdade Pública em Aveiro,
em Planeamento Regional e Urbano. Desta cidade apenas tinha ouvido falar de Sta
Joana. O curso, na área de ciências, com química e matemática à mistura,
adormecia dolorosamente as minhas entranhas. Acabei por me afastar da escrita
que sempre me acompanhara. Valeu-me a paixão pela cidade. A sua morfologia
aproximava-me do meu passado africano. Perto do mar, plana, destoava das restantes
terras portuguesas. As noitadas, entre um pé de dança numa discoteca,
jantaradas e convívio em cafés, davam-me forças para continuar a estudar,
mascarando uma rebeldia envergada em vestes negras. Só a teimosia permitiu
ver-me diplomada. Seguiram-se trabalhos, sem entusiamo ou cativação que me
preenchesse. Professora, Agente de Desenvolvimento, Diretora de Serviços, entre
estudos de Pós-Graduação em Estudos Comunitários e Europeus, foi como
Planeadora numa Câmara que o trem da minha vida descarrilou. Pela mesma altura
também tinha entrado no Mestrado de Estudos Africanos, na Faculdade de Letras
do Porto. Para mim: mais perto da minha África! A minha saúde que sempre tinha
sido frágil, não se sensibilizou com isso. Atirou-se sem para-quedas para o fim
do poço, onde o meu corpo mal sobrevivia a uma alma morta. Pareceu-me lógico
agarrar-me como um naufrago às recordações de África, espalhadas como cinzas
pelo Aeroporto da Portela, no dia em que regressara de Moçambique, no dia em
que fora reconhecida por uma fotografia. Regressar ao passado parecia ser uma
solução. Com uma mala atafolhada de medicamentos, numa leveza elefantina num
aumento de peso inusitado, tornei a pisar solo moçambicano. Nos intervalos das
pesquisas para a minha tese de mestrado, fazia o reencontro comigo. Descobria o
mapa da cidade, gravado nas sobras do meu espectro. Reconheci lugares,
pormenores, num resgate de lembranças do meu passado. Fazia a minha catarse!
Regressada a
Portugal, pela primeira vez, olhei para este que tinha sido o meu país de
acolhimento com olhos de agradecimento e aceitação. As raivas esvaneciam-se,
numa feitiçaria intrigante e a portuguesa que havia em mim, nascia. Mas para um
renascimento completo, algo ainda faltava. Esperava que o meu recôndito âmago
se revelasse... O reencontro com a escrita foi a varinha de condão. A pintura,
viria mais tarde ao meu encontro, aos trambolhões sem aviso prévio. A procura
espiritual agilizou o processo. Munida com estas três poderosas combinações,
numa mistura curativa, mexida num caldeirão por um druida de barbas brancas
compridas, tornou realidade o meu sonho de cura. Tornar-me escritora e artista
plástica, numa decisão com trinta e seis anos, balançava entre o inesperado
e o tardio. Sem dúvida, arriscada. Eu não sabia, mas tinha optado pela vida.
num sonho idealista de a viver, de fazer
o que gostava. E nem muros erguidos, preconceitos, medos originados pela
incompreensão de uma profissão diferente com futuro incerto me deteriam...
Percebia que a arte era ilimitada, ilustrada numa folha branca de papel, em
fantoches que contam uma história, num palco de teatro ou numa cena de um
filme. A liberdade tocou-me, o meu espirito sossegou e a alegria acolheu-me em
rejubilo.
Hoje eu guardo o
melhor da minha infância, na minha arte, nos meus escritos (como na coleção
infantil da Fadinha Lótus, símbolo da magia da minha meninice e das bonecas que
tinha. O lago de nascimento da Fadinha com águas quentes e mansas num
simbolismo ao Oceano Índico. Os seus amigos, animais, flores como tantos que lá
havia), nas cores que uso e materiais que me transportam a Moçambique com todo
o seu exotismo, tantas vezes espelhado nos saris
de indianas que encontrava na rua, recriando-me para outra cultura, sentir,
cheiro e comida picante.
Hoje, acredito que
tudo acontece como tem de ser. Nós não somos o passado, mas somos o que somos
graças ao passado que tivemos. Ele não é importante, apenas o que fazemos com
ele. As dificuldades que travamos, as batalhas que perdemos ou ganhamos,
ensinam-nos algo importante para o nosso crescimento evolutivo, e para
fortalecidos, encararmos novos desafios. Todas as vivências que tive não seriam
as mesmas se tudo tivesse sido de outra forma. Certamente não seria a mesma
pessoa. Provavelmente até nem seria artista...
CRISTINA MAYA CAETANO
ESCRITORA, POETA, ARTISTA PLASTICA, ILUSTRADORA.
LUANDA (ANGOLA) – LOURENÇO MARQUES (MOÇAMBIQUE) –
CEREJO. PINHEL. AVEIRO (PORTUGAL)
Nascida em Luanda,
Angola, com apenas uns tenros seis meses, mudava de país. Os meus olhos nunca
chegariam a contemplar a minha terra natal. Apenas me recordo de Lourenço
Marques (atual Maputo), Moçambique, onde foi batizada e vivi uma infância
feliz. Ainda presentemente, inspiram-me as corridas e as aventuras de triciclo
em que insistia em chocar contra as árvores e esmurrar os joelhos. As bonecas,
que adorava vestir e despir, ao mesmo tempo em que da varanda do andar em que
morava espreitava quem passava. O kukuana, o homem velho do saco, onde colocava
as crianças que não se portavam bem e as levava com ele. A luz do dia, as cores
da terra, os cheiros, a alegria das pessoas, o sol grande e vermelho. A praia
com areias finas e brancas e a água do mar quente, onde caminhava com a água a
bater-me nos tornozelos. As comidas, como o frango à cafrial, o chocol (especie
de moussse de chocolate em lata), as gomas e os chocolates sul-africanos. O
ringue de patinagem artistica, onde sonhava aprender a patinar e a dançar com
tutus vestidos. O drive in onde com a
minha família assistia ao ar livre, dentro do carro aos filmes do Trinitá,
bebendo coca-cola e trincando pipocas. As matinés, a leveza das roupas e o pé
descalço. “O casamento dos macacos”, apelidado ao tempo de sol, interrompido
por uma repentina queda de chuva, onde imaginava uma idílica e pormenorizada
cerimónia. A fruta sumarenta, como a manga, papaia, mamão e diversos outros
sabores tropicais. O Natal, com uma grande e enfeitada árvore de Natal coberta
de grandes presentes. As passagens de ano com pessoas nas varandas e carros a
apitarem saudando o ano novo.
Sim, foi uma infância
feliz! A cultura daquele país africano, na altura solo Português, pulsava
dentro de mim, quer no meu respirar, batimento cardiaco, ou na génese das
minhas células. Eu estava em África e África estava em mim. Mal me apercebi que
se instalava a guerra colonial. Até outubro de 1975 convivi com ela de perto.
Metralhadoras, Frelimo estavam por toda a parte. Na escola, nos sémaforos, nos carros,
na praia. Restava-me o pátio da minha casa para brincar e andar de bicicleta.
Por vezes tinhamos de fugir a rusgas. Os meus pais estavam comigo, sentia-me
protegida e na minha terra. Até que aconteceu o imponderável - a fuga para
Portugal. Tinha sete anos. Iria continuar a escola primária, em Cerejo, na
aldeia do meu pai, onde os meus avôs me acolheriam junto com o meu irmão de
nove anos. Nada conhecia de Portugal. Apenas sabia que tinha lá familia,
estranha para mim.
Era uma tarde fria,
invernosa, quando chegámos, sozinhos, amedrontados ao aeroporto da Portela,
Lisboa. Os parentes esperavam ansiosos com uma fotografia na mão. Os meus pais
tinham-lhe enviado previamente para ser possivel o reconhecimento. Sem os meus
pais por perto, pouco mais do que isso me interessava. O meu mundo acabara de
ruir. Nem as compras para uma indumentaria adequada me entusiasmavam. Kispos,
botas, casacos, camisolas de gola alta, eram-me totalmente desconhecidos. Nem
sabia para o que serviam. Salvou-me uma ida ao jardim-zoologico, com uma prima
que também tinha fugido de Moçambique e que em boa hora foi ter connosco. Um
rosto conhecido, num completo mundo desconhecido!
No dia seguinte, a
ida para a aldeia (Cerejo) começou. Chovia, nevoeiro cerrado. As curvas e
contracurvas numa direção destra (em Moçambique, conduzia-se pela esquerda)
assustavam-me, numa admiração ingénua de quem estava habituada a terrenos
planos. Pelo caminho ia-me imaginando vestida com saia de palha, pé descalço,
pilão na mão, morando numa palhota. Uma casa grande de pedra, com uma escadaria
infinita e uma lareira acessa, não estava em nenhum dos meus sonhos. Era de
noite e o fogo desplotou as minhas lágrimas até à exaustão. Salvou-me a
brancura da neve na manhã seguinte. Os animais dos meus avôs, cães, cabritas,
égua, amorteciam o choque. Os dias foram passando lentos. Depressa percebi que
os valores e costumes culturais eram por demais distintos aos que estava
acostumada, e por isso não os reconhecia. As idas constantes à missa, o
trabalho no campo, os carros de bois, a alimentação, a lavagem da roupa na
ribeira, o tricot, os cântaros de água. Uma dimensão planetária esquisita!
Os meus avôs, e a
aldeia esforçavam-se. Sentia uma certa proteção de todos e até tinha uma
amiguinha, que morava do outro lado da rua. A minha professora primária ia-me
buscar e levar a casa dos meus avôs e estava sempre por perto quando chorava
sem parar. Uma autêntica Fada Madrinha. Os meus pais visitavam-nos quando
podiam. Numa dessas desejadas visitas, surgiu a minha primeira grande alegria:
o meu pai trouxera de África, o Quico, o meu cãozinho, um lindo Lulu da
Pomerânia. Senti como se um bocadinho de mim se tornasse a reunir no meu
coração. Foram meses mais alegres, mesmo quando o Quico se perdia e aflita o
procurava. Ele era o meu elo perdido. Um dia desapareceu. Delicerado por entre
as rodas de um trator, nunca mais o vi. Quisera eu ter morrido com ele... A
minha avô materna também já se tinha juntado a nós em Cerejo. Depressa percebi
a sua amargura e o meu mundo fechava-se cada vez mais. Volvido mais de um ano,
foi a vez da minha mãe regressar de Moçambique. Ah, como aquele foi um momento
feliz! Uma nuvem macia girou em meu redor, num aconchego maternal.
Completados dois
anos, o meu pai instalou-se por fim em Portugal. A minha familia estava
reunida. Fomos viver para Pinhel, onde iria fazer a 4.ª classe. A procura de
emprego, de casa, os contendores com alguns móveis que o meu pai conseguira
trazer a ocuparem os terrenos da casa dos meus avôs, a ajuda aos refugiados e
retornados convertidos em leite em pó, ovos em pó, roupa e agasalhos
fervilhavam no meu cérebro. Mas agora tinha os meus pais, só que já tudo era
diferente. Tornei-me uma criança triste, delicerada com paludismo, fechada,
revoltada. A própria interioridade da terra condicionava limites para quem
queria se expandir e ser uma alma livre. Valeu-me a frequência da escola,
ingresso nos escuteiros, situações próprias da vida, que me levaram a aprender
novos costumes, criar defesas e uma compreensão própria ao que me rodeava.
Quando entrei em
Gestão em Lisboa, fiquei radiante. Encantava-me ser numa cidade grande (ao
estilo de Lourenço Marques que eu guardava com devoção nos meus sonhos). Quis o
destino que também tivesse entrado no mesmo ano na Faculdade Pública em Aveiro,
em Planeamento Regional e Urbano. Desta cidade apenas tinha ouvido falar de Sta
Joana. O curso, na area de ciências, com quimica e matematica à mistura,
adormecia dolorosamente as minhas entranhas. Acabei por me afastar da escrita
que sempre me acompanhara. Valeu-me a paixão pela cidade. A sua morfologia
aproximava-me do meu passado africano. Perto do mar, plana, destoava das restantes
terras portuguesas. As noitadas, entre um pé de dança numa discoteca,
jantaradas e convivio em cafés, davam-me forças para continuar a estudar,
mascarando uma rebeldia envergada em vestes negras. Só a teimosia permitiu
ver-me diplomada. Seguiram-se trabalhos, sem entusiamo ou cativação que me
preenchesse. Professora, Agente de Desenvolvimento, Diretora de Serviços, entre
estudos de Pós-Graduação em Estudos Comunitários e Europeus, foi como
Planeadora numa Câmara que o trem da minha vida descarrilou. Pela mesma altura
também tinha entrado no Mestrado de Estudos Africanos, na Faculdade de Letras
do Porto. Para mim: mais perto da minha África! A minha saúde que sempre tinha
sido frágil, não se sensibilizou com isso. Atirou-se sem para-quedas para o fim
do poço, onde o meu corpo mal sobrevivia a uma alma morta. Pareceu-me lógico
agarrar-me como um naufrágo às recordações de África, espalhadas como cinzas
pelo Aeroporto da Portela, no dia em que regressara de Moçambique, no dia em
que fora reconhecida por uma fotografia. Regressar ao passado parecia ser uma
solução. Com uma mala atafolhada de medicamentos, numa leveza elefantina num
aumento de peso inusitado, tornei a pisar solo moçambicano. Nos intervalos das
pesquisas para a minha tese de mestrado, fazia o reencontro comigo. Descobria o
mapa da cidade, gravado nas sobras do meu espectro. Reconheci lugares,
pormenores, num resgate de lembranças do meu passado. Fazia a minha catarse!
Regressada a
Portugal, pela primeira vez, olhei para este que tinha sido o meu país de
acolhimento com olhos de agradecimento e aceitação. As raivas esvaneciam-se,
numa feitiçaria intrigante e a portuguesa que havia em mim, nascia. Mas para um
renascimento completo, algo ainda faltava. Esperava que o meu recôndito âmago
se revelasse... O reencontro com a escrita foi a varinha de condão. A pintura,
viria mais tarde ao meu encontro, aos trambolhões sem aviso prévio. A procura
espiritual agilizou o processo. Munida com estas três poderosas combinações,
numa mistura curativa, mexida num caldeirão por um druida de barbas brancas
compridas, tornou realidade o meu sonho de cura. Tornar-me escritora e artista
plástica, numa decisão com trinta e seis anos anos, balançava entre o inesperado
e o tardio. Sem dúvida, arriscada. Eu não sabia, mas tinha optado pela vida.
num sonho idealista de a viver, de fazer
o que gostava. E nem muros erguidos, preconceitos, medos originados pela
incompreensão de uma profissão diferente com futuro incerto me deteriam...
Percebia que a arte era ilimitada, ilustrada numa folha branca de papel, em
fantoches que contam uma história, num palco de teatro ou numa cena de um
filme. A liberdade tocou-me, o meu espirito sossegou e a alegria acolheu-me em
rejubilo.
Hoje eu guardo o
melhor da minha infância, na minha arte, nos meus escritos (como na coleção
infantil da Fadinha Lótus, símbolo da magia da minha meninice e das bonecas que
tinha. O lago de nascimento da Fadinha com águas quentes e mansas num
simbolismo ao Oceano Índico. Os seus amigos, animais, flores como tantos que lá
havia), nas cores que uso e materiais que me transportam a Moçambique com todo
o seu exotismo, tantas vezes espelhado nos saris
de indianas que encontrava na rua, recriando-me para outra cultura, sentir,
cheiro e comida picante.
Hoje, acredito que
tudo acontece como tem de ser. Nós não somos o passado, mas somos o que somos
graças ao passado que tivemos. Ele não é importante, apenas o que fazemos com
ele. As dificuldades que travamos, as batalhas que perdemos ou ganhamos,
ensinam-nos algo importante para o nosso crescimento evolutivo, e para
fortelecidos, encararmos novos desafios. Todas as vivências que tive não seriam
as mesmas se tudo tivesse sido de outra forma. Certamente não seria a mesma
pessoa. Provavelmente até nem seria artista...
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