Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa (SAMWL): Um exemplo de
Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência
Berta Fernanda de Souza
Guedes Santana
Psicóloga
Vice-presidente da ‘Folia das Deusas”
Cumprimento
a mesa, agradecendendo terem aceite honrar-nos com o vosso saber neste Encontro
que a Associação Mulher Migrante aqui decidiu realizar, pela primeira vez no
Recife e também no nordeste brasileiro, na decorrência de uma modesta proposta
que me atrevi a fazer a esta Associação de Estudo, Cooperação e Solidariedade,
com sede em Lisboa, razão pela qual expresso o meu agradecimento às Presidentes
da Assembleia Geral e da Direção, Dras. Manuela Aguiar e Rita Gomes, a quem
cumprimento respeitosamente, por me terem dado a oportunidade de vivenciar todo
este processo, que embora penoso mas ajudado, contibuiu para mais uma vivência
pessoal em termos de cidadania.
Sou portuguesa nascida em Lisboa, cidade que
adoro, de alma lusa e nordestina de coração. Filha de português, do Porto, da
Foz do Douro e de brasileira, de Recife. Sou portanto resultado do encontro de
3 rios – Tejo, Douro e Capibaribe – todos deságuam no oceano Atlântico, oceano que
aqui me trouxe, fazendo-me lembrar Fernando Pessoa: “…navegar é preciso, viver
não é preciso”. Meus avós maternos, que alguns aqui neste salão com certeza
conheceram, eram de Trás-os- Montes: Berta e João de Souza, um dos sócios
fundadores do Clube Português, sócio benfeitor do Real Hospital Português, reconhecidos
anfitriões, sempre prontos a acolher os seus conterrâneos, como tantos outros
de seu tempo. Vim para Recife às vésperas de completar 12 anos e aqui estudei,
formei-me e comecei minha vida profissional, sem maiores dificuldades por ser
esta a terra natal da minha mãe, cidade onde passei muitas férias e que tão bem
me acolheu.
Como
fonoaudióloga e psicóloga, trilhei caminhos ou naveguei por águas que sempre me
levaram para as minorias ou os menos favorecidos: desde os beneficiários do
INSS[i],
deficientes físicos e mentais na APAE[ii],
usuários de álcool e outras drogas quando estive na coordenação clínica do
CAPSad[iii]
Professor Luiz Cerqueira e, atualmente, trabalhando como psicóloga, no
acolhimento, apoio e acompanhamento a mulheres vítimas de violência no Serviço
de Apoio à Mulher Wilma Lessa[iv],
e é desta experiência que falarei.
Violência
contra as mulheres, alguns podem estar se perguntando porquê o tema num
encontro como este?
Além
da relevância do assunto, estamos antecipando em uma semana o dia internacional
para a eliminação da violência contra a mulher, que é o dia 25/11, e que no ano
passado recebeu a seguinte mensagem do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:
Milhões de
mulheres e meninas em todo o mundo são agredidas, espancadas, estupradas,
mutiladas ou até mesmo assassinadas, atos que constituem violações atrozes dos
direitos humanos. Do campo de batalha para a casa, nas ruas, na escola, no
local de trabalho ou na sua comunidade, cerca de 70% das mulheres sofrem de
violência física ou sexual em algum momento de sua vida. Um quarto de todas as
mulheres grávidas é afetado.[v]
Portanto,
infelizmente, violência contra a mulher é um flagelo mundial, uma prática que
atravessa os anos e com características muito semelhantes em países cultural e
geograficamente distintos, mais e menos desenvolvidos, de tal ordem, que a ONU
criou em 2010 uma entidade – a ONU Mulheres - para promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres em
todo o mundo.
Em
2003, a Organização Mundial da Saúde considerou que a violência doméstica “é um
grave problema de saúde pública e que as conseqüências que lhe estão associadas
são devastadoras para a saúde e para o bem–estar de quem a sofre, comprometendo
o desenvolvimento da criança, da família, da comunidade e da sociedade em geral”[vi],
representando enormes gastos para os cofres públicos.
Segundo
o Conselho da Europa, a violência contra as mulheres no espaço doméstico é a
maior causa de morte e invalidez entre mulheres dos 16 aos 44 anos,
ultrapassando o câncer, acidentes de viação e até a guerra.[vii]
Estes dados internacionais cruzados com outros disponíveis em Portugal sugerem
que, semanalmente, morrem mais de cinco mulheres por razões direta e
indiretamente relacionadas aos atos de violência doméstica.
Estudos
de 2002 e 2003 indicam que, em Portugal, cerca de 1/3 das mulheres com 18 anos
ou mais são vítimas de violência e que o custo médio com a saúde por mulher
vítima de violência doméstica é de cerca de 140€ por ano, sendo que desse valor
127€ /ano são suportados pelo Serviço Nacional de Saúde, o equivalente a 91%
dos custos.[viii]
Comparando com os dados internacionais, verificamos que, com uma
taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, o Brasil ocupa a 7ª posição e
Portugal a 72ª, no contexto dos 84 países, estados-membros da ONU, com dados atualizados
na OMS entre 2006 e 2010.[ix]
No
Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA)[x], ocorrem, em média, 5.664
mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, o que corresponde a 15,52
mortes por dia, ou seja, um óbito a cada hora e meia.
O
Mapa da Violência contra a mulher de 2012, baseado em dados do SINAM[xi]
(Sistema de Informação de Notificação de Agravos à Saúde da Mulher) sinaliza que
uma mulher é agredida a cada
5 minutos no Brasil, que a região
Nordeste (entre 2009 e 2011) lidera o ranking com a maior taxa de feminicídios
do País: 6,9 mortes violentas por cada 100 mil mulheres. Esse mesmo mapa indica
que Pernambuco ocupa a 10ª posição entre os estados da federação e que Recife é
a 6ª capital do país em número de mulheres mortas em conseqüência de violência.
Tanto
Portugal quanto o Brasil tem vindo a desenvolver políticas continuadas e
serviços que visam dirimir ou amenizar as conseqüências que a violência provoca
na vida das mulheres bem como promovendo ações preventivas.
No
Brasil muito vem sendo feito neste sentido e, atualmente, com uma mulher na
presidência, mas também desde a criação, ainda no governo Lula, da Secretaria de
Políticas para a Mulher, com status de Ministério, esperamos que as políticas
nesta área sigam avançando. A nossa realidade estadual e municipal acompanha esse
quadro nacional, com inúmeras iniciativas, que perpassam várias secretarias, em
ações inter-setoriais, como muito bem já falaram a Secretária Estadual, Dra.
Cristina Buarque[xii]
e a Secretária Municipal, Dra. Sílvia Cordeiro[xiii].
Todos
nós, de uma forma ou de outra, já nos deparamos com alguma situação desta
natureza e é nosso dever, enquanto cidadãs e cidadãos (pois falo também para os
homens) contribuir para transformar esta realidade tão sofrida.
Trago
o exemplo de uma iniciativa pioneira implantada no Hospital Agamenon Magalhães[xiv],
que é um equipamento público, estadual onde existe uma ilha de excelência no
atendimento às mulheres vítimas de violência. Este serviço chamado Serviço de
Apoio à Mulher Jornalista Wilma Lessa, mulher que muito lutou pela causa feminista,
foi inaugurado em 2001 num espaço diferenciado e reservado do hospital e
funciona em regime de plantão, 24h, de 2ª a 2ª, inclusive feriados. É
constituído por uma equipe multiprofissional da qual fazem parte médicos,
enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e que integro desde 2006.
Esta
equipe é responsável por acolher a mulher vítima, prestar-lhe os primeiros
socorros, examiná-la do ponto de vista tanto clínico quanto biopsicossocial,
estabelecer e aplicar a conduta médica obedecendo o protocolo adequado ao tipo
de violência sofrida.
É
realizado o acolhimento e prestada a assistência psicológica não só no 1º
atendimento, mas durante o período em que a paciente apresente sintomas de
estresse pós-traumático, ajudando-a na recuperação da sua auto-estima e na
reconstrução do seu projeto de vida.
O
serviço acompanha esta paciente durante o tempo necessário ao seu
restabelecimento e promove também a conversa com os outros organismos e
instituições envolvidas para que a paciente tenha toda a atenção e cuidados
pertinentes, cuidados estes que envolvem desde esclarecimentos sobre a Lei Mª
da Penha e seus encaminhamentos (a lei que tipifica a violência doméstica como
crime), ao aborto previsto por lei (que se aplica aos casos em que a gestação é
fruto de um estupro), passando por toda a conduta de prevenção e profilaxia
para DST/AIDS bem como a realização da cadeia de custódia.
Eis
alguns números do serviço neste ano de 2013, contabilizados até Setembro:
Nº
de atendimentos de novos casos: 512 (257 vítimas de violência sexual, 224 vítimas
de violência física, 29 vítimas de ambas as violências e 2 sofreram ameaças)
Nº
de retornos ao serviço: 677
Nº
de casos encaminhados para o Programa de Aborto Legal: 8
Nº
de casos em Programa Pré-Natal no serviço: 17
Nº
de casos de reincidência: 9 (4 vítimas de violência sexual, 4 vítimas de
violência física e 1 vítima de ambas as violências).
Há um soneto de Florbela Espanca que muito me lembra o sofrimento das mulheres que diariamente nos procuram no serviço, por falar de um vazio, de um desamparo, de um sentimento de não-pertencimento que é tão comum a estas mulheres:
Lágrimas ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Florbela Espanca[xv]
Finalizo
citando novamente o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon:
A violência
contra as mulheres não pode ser tolerada, de nenhuma forma, em nenhum contexto,
em nenhuma circunstância, por nenhum líder político nem por nenhum governo. [xvi]
Queria
situar que foi destas experiências de trabalho que surgiu a idéia de criar uma
associação que cuidasse das mulheres, mas de outra perspectiva, com foco nos
seus direitos de cidadã, na sua saúde e educação, autonomia financeira,
criatividade, enfim, visando o tão necessário e desejado empoderamento. Em
conversas com amigas e colaboradores concluímos que por meio de um bloco de
Carnaval, instituição enraizada na nossa cultura, poderíamos chamar a atenção
da sociedade para essas questões e, assim, nasceu “Folia das Deusas”,
associação que organizou este evento.
Por
fim, peço às portuguesas e luso-descendentes que não fizeram parte desta mesa
que não se sintam desprestigiadas e sim estimuladas a participar da próxima
edição, contribuindo com as suas experiências.
Não
queria encerrar sem antes agradecer ao nosso anfitrião, o Dr. Celso Stamford
Gaspar, Presidente em exercício do Gabinete Português de Leitura, pela cedência
deste espaço e de todo o apoio da sua equipe, ao Vice-Cônsul de Portugal no
Brasil, Dr. Adriano Moutinho por todo o apoio e incentivo dado a esta
organização, à jornalista Geórgia Alves pela divulgação e articulação com a
comunicação social, bem como aos nossos patrocinadores, Sra. Dona Fernanda Dias,
da Casa do Frios, Sr. Manuel Tavares, do Conselho da Comunidade Portuguesa de Pernambuco e o Real Hospital
Português.
Muito
obrigada!
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