quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Danyel Guerra


19 de Junho de 2013

 

 

                         “Para a ópera cómica da tua beleza sem costura”

 

                                         José Carlos Ary dos Santos

 

 

                                       

                           FELIZ NATÁL...IA

 

 

A Cinza… De repente, mais que de repente, a mulher, de porte donairoso, silhueta algo roliça, desvia da conversa os olhos buliçosos. Abrindo a bolsa, de um aveludado tom bordeaux,  pinça ágil um cigarro, de imediato introduzido numa boquilha preta. O fogo do isqueiro deflagra um clarão fátuo, ardente o suficiente para, em instantes, incinerar partículas de tabaco e a ponta da mortalha. Sem demora, uma golfada de fumo atravessa aqueles lábios de um escarlate vibrante.

…das Horas. A seu lado, reverente como um súdito, o homem, esticando o braço, olha para o relógio de pulseira prateada. Bonachão, algo anafado até, ele levanta uma voz austera, amaciada pela bonomia de uma primeira palavra. Querida, atenção às horas. Às cinco, temos um compromisso no centro de Lisboa.

 

“Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais são depois da orgia?”

 

O aviso tanto bastou para que eu me apercebesse de que começava a correr o risco de gerar algum constrangimento na agenda do casal. Não se atrasem…continuamos a nossa conversa um dia destes. Sugeri protocolar, segregando todavia a convicção de que esse reencontro nunca aconteceria.

Afastando a piteira dos lábios cinabrinos, a mulher, despojada do mínimo assomo de fatuidade, é cerimoniosa, mas ao mesmo tempo informal.

Será um prazer! Enquanto isso não acontece, consulte a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Vai encontrar lá a Metempsychose.

 

“Accaso nunca a imagem fugidia/Do que fostes, em vós se agita e freme!”

 

Eu estava, pela primeira vez, na cidade de onde o Capitão de Abril Salgueiro Maia zarpou para precipitar a queda da ditadura, “o estado a que isto chegou”. Tinha sido escalado pela revista Cinema Novo para fazer a cobertura do Festival de Cinema de Santarém.

Logo que cheguei, consultando o programa do certame, deparei com um título que atiçou minha curiosidade. Santo Antero (1979). Lendo a sinopse, constatei que era uma espécie de biopic do poeta Antero de Quental, expoente do romantismo literário português

Apesar do horário não ser nada propício, no dia seguinte, às 12 horas, me apresentei na sala de projeção, onde se acomodava uma exígua assistência.  No final da sessão, fiquei para o debate que o diretor e a argumentista se dispuseram a estabelecer com o que restava da plateia. Pela minha parte, o diálogo se centrou em domínios essencialmente literários. Comecei por sublinhar o elevado conceito em que é tida no Brasil a arte poética de Quental. Para os brasileiros cultos e eruditos, ele continua sendo estimado como o terceiro, numa escala cronológica, grande sonetista da poesia portuguesa, depois de Camões e Bocage.

Mais que consideração, podemos falar mesmo de veneração, alentei. Ainda recentemente, li numa revista, uma matéria sobre reencarnação, que era ilustrada com um soneto do Antero cujo tema é a transmigração das almas. É, certamente, Metempsychose, arriscou, sem pestanejar, a argumentista de nome Natália Correia.

 

“N’outra vida e outra esphera, onde geme/Outro vento, e se accende um outro dia,”

 

No dia seguinte, quem eu encontrei, num típico restaurante escalabitano,  foi meu camarada Nuno Sampaio, crítico de Cinema numa revista lisboeta. Ele acabava de devorar um entrecosto com arroz de feijoca.

Nuno, você nem imagina o que me aconteceu ontem. Tive um encontro imediato do segundo grau e meio, com uma mulher fascinante, uma poeta do Cinema. Eu tinha acabado de ver o Santo Antero, do Dórdio Guimarães e…    

O Dórdio? Sabes que ele é filho do Manuel Guimarães, o….

Não, não sei! O que eu fiquei sabendo é que a roteirista da fita, uma coroa bem enxuta*, tem uma compulsão poética muito intensa, muito antenada. O nome dela é Natál…

Lá vens tu com mais uma paixão súbita e mortal. Mas quem está morto de pressa sou eu. Vais ter um encontro galante? Antes fosse. Vou às Portas do Sol tirar umas fotos do Tejo e da lezíria, que me pediram lá na revista.

 

“Que corpo tínheis? que materia fria/Vossa alma incendiou, com fogo estreme?”  

 

E eu estou pensando em ir à Igreja da Graça, visitar a sepultura do Pedro Álvares Cabral. Até logo!

Após degustar a açorda de sável, uma especialidade ribatejana, sempre decidi tomar o rumo da igreja. Notável templo gótico, excelso exemplo de fervor artístico, dedicado também a Santo Agostinho. No ambiente, impunham-se os tons típicos do outono. A estação começava a fazer surtir no meu astral aquela sensação de abulia deprimente que o anúncio da chegada do frio e da chuva sempre provoca.

Energizado pela serena luminosidade da Igreja da Graça, me voltei para o absidíolo direito. Diante da mesa do altar, lá está a sepultura de Seu Cabral. Sobre a pedra tumular da campa rasa, uma inscrição em carateres góticos, se mostra lacônica em informações acerca do defunto. O epitáfio prefere antes exaltar os pergaminhos da esposa do navegador. Nem sequer uma alusão ao fato de ali jazerem os restos mortais do descobridor (oficial) do Brasil.   

 

 A Natália Correia, Danni, a Natália esteve aqui no festival, e não me disseste nada!, bradou o Nuno, quase derrubando a xicara do café, com que coroava sempre o jantar. Não disse nada, Nuno?! Ao almoço, estavas tão apressado. Mas porquê todo esse espanto, afinal quem é essa Natália?

Essa Natália, Sr. Danyel Guerra, é simplesmente a maior poeta viva de Portugal. Sim, ela até é bem grandinha! Não gozes… e tu não sabes quem ela é. E sou obrigado a saber? E tu, Nuno, sabes quem é a Clarice Lispector?   Cla...cla…claro… Claro, Nuno, é um filme do Glauber…Claro que sei, não gozes. Claro que não sabes quem é a Clarice, mas também não és obrigado a saber.

 

“Vós fostes nas florestas bravas feras/Arrastando, leoas ou pantheras,/ De dentadas d’amor um corpo exangue”

 

Mal regressei ao Porto, comecei a saber quem era essa Natália. Corri no dia seguinte para uma livraria em busca de livros da poeta e de um exemplar da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos cancioneiros medievais à actualidade (1966). Olhando para a capa, verifiquei que tinha sido organizada pela Natália. Este desplante editorial teve, soube mais tarde, como consequência, o corretivo de três anos de prisão, com pena suspensa, “por ofensa a moral e aos bons costumes.” Em 1972, ela se tornaria a “quarta Maria”, enfrentando na cara e na coragem a insidiosa cabala montada contra o livro Novas Cartas Portuguesas, das “Três Marias”, de que fora responsável editorial.

O Nuno tem razão, ela é mesmo grande, la más grande, como diriam os vizinhos do lado. Até nos mínimos detalhes. Quando me sugeriu a antologia, evitou fazer qualquer alarde da sua autoria. E lá estava impresso Metempsychose, originalmente publicado no livro Primaveras Românticas, Porto, 1872. (1)

 

Dilúvio e Pomba. Nas semanas seguintes devorei a obra poética desta micaelense telúrica, como se fosse o mais refinado dos manjares. Apreciei, em especial, os poemas do livro Mátria, em que ela antecipava um conceito progressivo de Feminismo, o Matricismo que, conforme sintetizaria Clara Ferreira Alves, identifica a Mulher “como matriz primordial e arquétipo da liberdade erótica e passional.”  A propósito, não será descabido admitir que Natália tenha inspirado Caê Velô  em Língua (1984):  “E eu não tenho pátria, tenho mátria/ E quero fátria”

Era ela mesmo que sugeria. “A poesia é para comer”. E beber, acrescento eu. Ao mesmo tempo, pão e absinto. Esta indomável Nathalie é uma ‘hematopoeta’, não hesitaria em proclamar Jean Cocteau. Afinal, ao fazer poesia, ela contemplava aquela abrangência holística que, etimologicamente, esta arte assume na língua helênica. Nat denotava ser uma criadora, uma inventora, uma transmutadora, (“una hacedora”, proporia J.L. Borges), alguém capaz de transformar a mais prosaica das situações, a mais trivial das realidades cotidianas, num meigo, comovente, lírico ato poético, adejando como uma pomba. Ou num vulcânico, provocador e sardônico desacato poético, inundado pelas águas vivas e furiosas de um dilúvio.

Pertencem hoje ao domínio da lenda algumas de suas demolidoras performances parlamentares, enquanto deputada. Como aquele automático poema irrisório, O Fim do Coito, concebido em plena bancada, no frenesi de um debate etorno de um tímido projeto de lei que autorizava a interrupção voluntária da gravidez. O “muso” de ocasião, 3 de abril de 1982, seria o deputado João Morgado (CDS), que, parcimonioso, proclamava que “o ato sexual é para ter filhos.”

 

“Mordei pois esta carne palpitante, /Feras feitas de gaze fluctuante…/Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!”

 

Ou ainda aquele soberbo despautério de receber, junto com Helena Roseta, a deputada italiana Cicciolina, do Partido Radical, na Assembleia da República. Um caso tremendo que abalou o Parlamento, corria o ano de 1987. Uma visita conforme o figurino da azougada pornostar, com top-less incluído e tudo. Que pedaço de mau caminho (2). Perante o escândalo farisaico de alguns pudicos deputados, Nat recordou que a estátua da República exibe o torso generosamente desnudado.

.     

Inúmeras vezes pensei em visitá-la no seu bar, o Botequim, no bairro lisboeta da Graça, para obsequiá-la com pasteís de nata, entrevistá-la, papear* com ela, conhecer a fátria tertúlia a que todas as noites ela doava o corpo, de alma aberta, sem restrições de preconceito político, cultural ou sexual.. Um reencontro fadado para nunca acontecer. Na aurora funesta do dia 16 de março de 1993, após mais uma ardente “estação no paraíso” do boteco, as Parcas a arrebataram. Natália podia agora, fumar, plácida, mais um cigarro,  sentada no banco de Ponta Delgada, em que Antero se suicidou. E dizer a Metempsychose, com aquela voz poderosa, de soprano de uma ópera wagneriana.

Agora, eu apenas pretendo que a Natália me confie suas sensações daquela noite de eufórica lusofonia, a 19 de dezembro de 1968, em que a Amália e o Vinicius cantaram e declamaram juntos Saudades do Brasil em Portugal, ao som da guitarra de Fontes Rocha e da viola de Pedro Leal. Dessa função, no aconchego do sobrado da Rua de S. Bento, também participaram José Carlos Ary dos Santos e David Mourão Ferreira, seus camaradas de poemia. “De noite ardo”, terão na certa e

certeiramente bradado em uníssono.

Um reencontro adiado, porventura, para uma próxima reencarnação em que, por efeito de uma transmigração da alma, Natália retorne à matéria como a flor humilde que se encosta ao muro da opressão, para o abalar, senão mesmo, para o derrubar. Feliz Natál…ia.

 

 

Notas

     

1- Albino Forjaz de Sampayo e Bento Mantua incluíram  o Quent…al

      soneto na antologia O Livro das Cortesãs, composta por poemas

         sugeridos pelo milenar ofício da prostituição ou dedicados a prostitutas.

         Edição da Livraria Editora Guimarães & Cª, Lisboa, 1917, p.68   

 

2 -A Natália também exuberava nessas artes do descaminho. José Augusto  

    França não economizava nos elogios, aí pelos anos 50: “ela é a mais linda    

    mulher de Lisboa.” Ary dos Santos realçava sua “beleza sem costuras” no

    poema Casaca. Mário Cesariny se rendeu, também pela década de 50, aos

    encantos de Natália, na primeira vez que a viu no Teatro S.Carlos:  “…era

    quase extra-humana, era muito mais linda que a mais bela estátua feminina de

    Miguel Ângelo.” Isto, apesar, de já nessa época, “não ser muito afecto à   

   senhoras.”( entrevista a Carlos Câmara Leme, jornal Público, 16.03.2003)

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