sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Maria Benedicta Monteiro Evocação de Maria Lamas

Evocação de Maria Lamas:
Um contributo cultural de expressão feminina
Maria Benedicta Vassalo Monteiro
E para mim um privilégio participar nesta sessão sobre “Contributos culturais de
expressão feminina”, um desafio à nossa compreensão sobre o significado da
diversidade na produção cultural na nossa sociedade.
A comunicação que vou fazer tenta mostrar como a vida de uma mulher pode ser,
na sua produção, mas também na sua postura, um “contributo cultural de expressão
feminina”, essa dimensão menos avaliada da vida de Maria Lamas que parece ser uma
das chaves da persistência da sua presença na nossa memória e no nosso imaginário
colectivos.
Cento e vinte anos apos o seu nascimento e 30 anos apos a sua morte, Maria Lamas
(1893 1983) esta longe de ser uma personagem do passado, onde quer que a queiram
arquivar. Nesse sentido propus a dois grandes jornais portugueses que registassem
a efeméride, lembrando a sua figura impar, precisamente como jornalista, pela
influência que teve nos seus contemporâneos, mas também pelo símbolo que passou
a representar em Portugal de mulher inteira, na família, na profissão, na política, na
resistência contra a ditadura e na defesa da paz mundial. Fiquei surpreendida pela
pergunta: “ Mas o que há de novo sobre ela para termos uma peça jornalística?”. Sim,
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pensei, o que há de novo?
Mas nem todos pensaram assim e três instituições recrearam a novidade que parecia
ser precisa para celebrar a mulher Maria Lamas:
A Câmara Municipal de Torres Novas, a sua 1ª pátria afectiva, lugar da sua infância e
do seu crescimento como mulher, inaugurou no passado dia 6 de Outubro, dia do 120º
aniversário do seu nascimento, uma grande exposição, recreando a sua vida profissional
literária, política e cívica, e mesmo pessoal.
A Câmara Municipal de Miranda do Douro incluiu Maria Lamas na sua exposição
“SÉCULO XX, ESCRITO NO FEMININO” em Setembro, e a Biblioteca-Museu República e
Resistência promoveu no dia 7 de Outubro uma Conferência evocativa do seu intenso
percurso político.
A Associação Mulher Migrante, por sua vez, associou-se a esta celebração, abrindo este
Encontro Mundial das Mulheres da Diaspora com uma homenagem pública a Maria
Lamas pelo 120º Aniversário do seu nascimento.
Mas porquê trazê-la agora para esta sessão de “Contributos culturais de expressão
feminina”? Já a vimos como escritora, como jornalista, como militante política e como
parte do conjunto de Mulheres da diáspora que a Associação Mulher Migrante de novo
traz hoje aqui.
Não há talvez muitas mais novidades na história destes percursos em que Maria
da Conceição Vassalo e Silva (Maria Lamas) se notabilizou, pelo menos sobre a sua
vida publica, e que se encontram registados
em conferências, biografias, ensaios,
dissertações de Mestrado, Teses de
Doutoramento e milhares de
correspondência, muita da qual guardada no
seu espolio na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Como jornalista, recordamos que foi durante 20 anos directora de uma Revista de Vida
Feminina do jornal “O Século”, que paciente e persistentemente transformou numa
escola de comunicação com
Jornal ‘O Século’ 1928-1947
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 centenas de mulheres: Chamou colaboradores de varios quadrantes da vida cultural
portuguesa, criou uma coluna de correio com as leitoras, publicou notícias, obras
e fotografias de mulheres portuguesas e estrangeiras que escreviam, pintavam,
cantavam, dançavam, faziam desporto, ganhavam prémios e se notabilizam como
cientistas, artistas, empresárias, modelos e artesãs, propos e ensinou actividades
culturais e desportivas, a par de actividades domésticas de saúde, alimentação, lazer
e de educação dos filhos. ‘O jornalismo foi a minha grande escola. Foi ele que me fez
tomar consciência da possibilidade de me exprimir escrevendo, dando-me confiança
para o fazer’ diria ela mais tarde.
E sabemos que criou e dirigiu 4 revistas para crianças e uma Revista para raparigas, e
que ela própria era redactora de várias rúbricas nessas e noutras revistas.
Como escritora, recordamos que ela teve a paixão
pelo romance e pela literatura infantil, mas entre nós
ficará fundamentalmente o enorme trabalho inédito
sobre “As mulheres do meu país”, de que mais adiante
falarei.
Como militante política, sabemos que Maria
Lamas foi denunciante da ditadura de Salazar
desde que se tornou membro do MUD, que
teve um forte envolvimento em movimentos nacionais e internacionais para a
democracia e para a paz, que várias vezes pagou com a prisão o seu protagonismo, até
não se submeter mais à ditadura e, em 1962, emigrar durante 7 anos para França para
ai poder continuar a militância política. De onde
regressou em 1969, ao abrigo da Primavera
Marcelista. E sabemos também que, com a
aurora da democracia, em 1974, aí estava Maria
Lamas deslumbrada e comovida, desfilando em
Lisboa no 1º de Maio lado a lado com muitos
milhares de portugueses.
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Talvez saibamos ainda que, nos últimos anos de vida, viu muitos sinais de
reconhecimento e de gratidão pela sua militância cívica e política: conferências, livros,
medalhas, evocações, nomes de ruas, de bibliotecas e de escolas, esculturas públicas,
tapeçarias, desenhos, quadros e placas comemorativas.
1974 – 1º de Maio em Lisboa
Mas uma coisa é menos visível: o modo como transformou, ao longo de toda
a vida, os problemas sociais e ideológicos em movimentos de cultura, no
sentido mais abrangente: o de escutar mensagens e interrogações, o de juntar
as pessoas, o de fazer chegar mais longe a indignação e o entusiasmo, o de
atribuir um significado cívico e político a essas interrogações e finalmente o de as
transformar em intervenção pública.
E a esta forma de uma mulher estar presente, no seu tempo e na sua sociedade, chamo
aqui um contributo cultural de expressão feminina.
Ilustro brevemente com dois momentos da sua vida:
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Foi assim na militância cívica, na qual traduziu a
sua paixão pela intervenção pública. Vêmo-la
em 1947 a dirigir o Conselho Nacional das
Mulheres Portuguesas e a tirá-lo da letargia em
que mergulhara, constituindo uma equipa e
organizando nesse ano, na SNBA, em Lisboa,
uma exposição de “Livros escritos por
mulheres”, vindos de 27 países da Europa, da
Ásia e das Américas do Norte, Centro e Sul,
onde estiveram representadas mais de 1000
escritoras, entre as quais 221 escritoras
portuguesas. Diz assim no Prefácio: “É a
primeira vez que em Portugal, e talvez no mundo, se realiza uma exposição destinada a
reunir livros escritos por mulheres de todos os países, numa demonstração total da
colaboração da mulher no domínio intelectual da vida humana”.
Foi uma pedrada no charco e um desafio ao
regime, que fechou de imediato a séde do CNMP
por mandato do Governo Civil de Lisboa,
argumentando que as mulheres portuguesas não
precisavam desse Conselho, porque o Estado
Novo se encarregava de as educar. Mas a
mensagem da ousada iniciativa da exposição, e
de que a capacidade de participação das
mulheres na criação literária, em todo o mundo,
como também em Portugal, era a expressão
feminina de uma nova era cultural, passou e frutificou.
Foi assim, também, na decisão de se demitir do jornal “O Século” (´Senhora D. Maria,
ou escreve no ‘Século’ ou faz política’), disse-lhe angustiado Pereira da Rosa, o Director
do Jornal, sob ameaça da Censura e de suspensão do jornal. Perante o encerramento da
séde do Conselho, Maria Lamas, desempregada, reage:
1947 - Mulheres portuguesas no
Catálogo da Exposição na SNBA
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‘Não precisam de associações de mulheres? Então eu vou ver como vivem as mulheres
do meu país!’
E assim nasceu a sua obra de maior fôlego e que a notabilizou, não só pela sua
dimensao académica, mas sobretudo pela sua dimensão civica e política: ‘As Mulheres
do meu País’.
Para a realizar, Maria Lamas criou com o casal Fróis de Figueiredo a Editora Actualis,
onde viria a publicar essa extensa ‘reportagem’ sobre a vida das mulheres portuguesas,
publicada em 24 fascículos mensais, entre 1947 e 1950, data em que apareceu em livro.
Organizou uma pequena equipa de retaguarda para a edição dos textos, o tratamento
das fotografias, os desenhos de ilustração, e em Dezembro de 1947 meteu-se a caminho
de Portugal: “Andei dois anos sozinha, de comboio, de camioneta, de carro de bois, a
pé, de burro, de toda a maneira, e tendo começado no Minho, só parei em Vila real de
Santo António” diz numa entrevista (1971).
E de novo Maria Lamas, inspirada pelo que viu e escutou, transformou o que poderia
ter sido uma identificação exaustiva de profissões, de descrições dos quotidianos
femininos e dos seus contextos familiares e sociais, em si mesma de grande valia
etnográfica, num sublinhar constante das capacidades das mulheres para tarfas mito
complexas, para a organização da vida pessoal e familiar e para a sua resistência física e
psicológica para conjugar o trabaho doméstico e o trabalho profissional. Mas sobretudo
transformou o que viu, ouviu e registou também num grito de urgência cívica e política
em desocultar a ignorância, o sofrimento, a desumanização e o abandono que
encontrou numa grande parte dessas mulheres.
Procurei o que teria Maria Lamas visto, ouvido,
fotografado e registado, por exemplo, em relação às vidas
das mulheres no litoral norte de Portugal. E como falou
dessas mulheres.
Entre muitas outras vi fotografias e referências ao
trabalho ligado ao mar, como a escolha da sardinha.
Escreve Maria Lamas ‘É um trabalho que exige prática e desembaraço…’, ‘Como todas
as outras mulheres do campo e do mar, elas também vão à lenha e ao mato.’...‘Não
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param um instante, estas trabalhadoras resolutas…’ (p. 331).
Vimos tambem exaltar a maestria do trabalho
das Cordoeiras de Paramos, empregando as
mulheres desde a infância à velhice. ‘Com o
esparto enrolado à cintura, as mulheres vão
dando voltas para que ele se
desenrole…’ ‘Requer agilidade e certeza este
trabalho que as camponesas de Paranhos fazem na perfeição, desde os cordéis às
cordas de todas as espessuras…’ (p. 137).
Vi tambem o trabalho das Vendedeiras dos
produtos agrícolas, que elas próprias criam e
levam às feiras e mercados do Porto.
…’Vêm de Avintes…e de outros arrabaldes do
Porto, antes de romper o Sol, e regressam a casa
a meio da tarde, cansadas mas animosas, para
recomeçar na madrugada seguinte.’...´Têm uma
fisionomia expressiva, inteligente…com o lenço
posto à maneira inconfundível do Douro Litoral...’. (p.140).
“As mulheres do meu país”, empreendimento nunca repetido desde 1948, foi uma obra
amplamente reconhecida de jornalismo etnográfico, mas numa perspectiva mais larga,
pelas múltiplas dimensões de análise que nela se cruzam, fica como um processo e um
contributo cultural de expressão feminina.
Evocar Maria Lamas neste contexto é para mim motivo de profunda emoção, mas
também de honra, pela saudade que guardo da minha avó Maria, do seu nobre coração
de mulher, da sua profunda empatia com o sofrimento dos outros, do seu valente
afrontamento do poder ilegítimo, do seu feminismo que uniu homens e mulheres no
mesmo abraço, da sua insaciedade em busca de amor. Neste ENCONTRO MUNDIAL
de MULHERES DA DIÁSPORA que quer celebrar Expressões femininas de cidadania
e o seu contributo cultural junto-me aqui convosco, como membro da comunidade
científica e como parte dessa ‘metade da humanidade’ que são as mulheres, para
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celebrar a dimensão de intervenção cultural da vida e obra desta mulher na sociedade
portuguesa. O registo de universalidade em que Maria Lamas inscreveu o seu trabalho
farão dela, seguramente, uma presença cultural luminosa e uma mensagem sem tempo
e sem pertenças.
Lisboa, Palácio das Necessidads, 25 de Outubro de 2013

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