sábado, 9 de novembro de 2013

Manuela Bairos (Painel Artes)


6º Painel: Contributos Culturais de Expressão Feminina – Artes”

Comunicações de Aida Batista (Escritora); Ana Maria (Pintora); Thais Mattarazzo (Jornalista) – Brasil; Ana Maria Cabrera (Escritora) – Argentina e Balbina Mendes (Pintora); Moderadora – Manuela Bairos (MNE)

 

Há alguns anos assisti a uma sessão sobre igualdade de género organizada com o objectivo de sensibilizar as mulheres portuguesas para a necessidade de maior participação política em que era oradora a maestrina Joana Carneiro. Com a afabilidade que lhe é característica, a Joana relatou a sua participação num workshop para jovens maestros organizado por um país de tradição germânica. A sua presença feminina não deixou de causar surpresa e curiosidade entre os participantes porventura todos homens jovens. Um deles não terá conseguido esconder a sua perplexidade: uma mulher reger Beethoven? admito que sim... Mozart? ainda... mas Wagner?

O mundo feminino tem sido definido em função dos padrões tradicionais de divisão de ocupações entre homens e mulheres. Assim continua, com algumas bolsas de excepção em certos países “ocidentais”, que procuraram activamente quebrar com esses padrões. As Artes são por natureza um domínio em que impera a criavidade, a descoberta, a ruptura e até a rebeldia. Assim, será de esperar que as mulheres possam afirmar-se em todos os domínios artísticos onde a sua especial sensibilidade as possa levar.  Restam, a meu ver, duas questões sobre as quais será interessante reflectir no âmbito deste painel das “Artes - Contributos Culturais de Expressão Feminina”, que tenho o privilégio de moderar com várias mulheres que se destacaram na diáspora na promoção de manifestações culturais da herança portuguesa, com a sua sensibilidade e preocupação feminina: (1) terão as mulheres de percorrer um caminho mais árduo do que os homens para a sua afirmação no domínio artístico? (2) serão as artes um veículo com particular potencial para a afirmação da agenda da igualdade de género?

Sobre a primeira questão, o talento é um elemento determinante, conjugado naturalmente com um ingrediente de aceitabilidade intelectual e social não despiciendo. Quanto ao talento não consta que a natureza o tenha distribuído por critérios de género. Contamos com várias mulheres como expoentes da nossa produção cultural recente, algumas delas da diáspora como Vieira da Silva e Paula Rego. Já a forma como o trabalho artístico é compreendido e recebido envolve frequentemente um inconfessada dúvida na generalidade das sociedades “ocidentais” que conheço e que mais não é do que o reflexo no campo artístico do mesmo cepticismo que prevalece relativamente à afirmação das mulheres em domínios que foram durante séculos um quase exclusivo dos homens.

Esse padrão ainda subjacente nas nossas sociedades está a diluir-se progressivamente com uma nova atitude assumida pelas novas gerações e com o progresso das novas tecnologias de uso pessoal que não conhecem barreiras de género. Sobretudo a designada “cultura erudita”,  será hoje porventura menos permeável a preconceitos de género, num mundo onde a concorrência é feroz e o reconhecimento frequentemente aleatório e contingente.

Mesmo assim, Ana Maria sente que o terreno é ainda movediço e com a sua pintura e com o texto que nos apresentou lança um grito de consciência:

Do passado, que ainda nos traz a memória da mulher doméstica, passando pelo tempo do discurso da autonomia feminina, temo que hoje, os antigos sonhos dos direitos e igualdades tenham sido substituídos por uma desregulação da feminilidade transformando a mulher imagem/corpo numa espécie de negócio milionário que tudo vende.
Sem conteúdo, usam-nos “ bonequinhas”, quase sempre seminuas. Se noutros tempos a nossa identidade estava consignada ao “consentimento” masculino, agora, esta obsessão pelo corpo é aquilo que nos assegura o estatuto social sobre o outro, sem o complexo do género.

(...) Se no quotidiano aceitamos que somos lutadores até ao fim, também o ato criativo  é a convicção permanente de que aquilo que fazemos é não só a possibilidade de intervenção convicta no mundo como também  é sempre uma nova batalha. Fracasso... Falhanço... Festejo..., é o final com que nos apresentamos”.

 

Por seu turno, a escritora argentina Ana Maria Cabrera, partilhou connosco a história de vida da soprano portuguesa Regina Pacini, que viria a ser a Primeira Dama da Argentina e que venceu os preconceitos da sociedade de Buenos Aires de então, construindo uma obra de excepcional alcance cultural naquele país.

La sociedad argentina no admitía la unión de un aristócrata con una artista. Pero Marcelo desafió los prejuicios de la época para casarse con Regina en Lisboa, el 29 de abril de 1907. (...) Cuando Alvear llegó a la presidencia de la Nación, en 1922, Regina Pacini pasó a ser la Primera Dama del Siglo XX y la única extranjera. (...) Regina Pacini fue protagonista de un largo e intenso amor. De la mano de su esposo esta generosa mujer portuguesa soportó en silencio la indiferencia de la sociedad argentina respondiéndonos con el regalo de grandes obras culturales: la Casa del Teatro, refugio de la vejez de los artistas y Radio Municipal para que todo el pueblo pueda escuchar el bel canto desde su hogar.  (...)La belleza del Arte eleva el espíritu. Hoy la necesitamos más que nunca. Portugal y Argentina dos países que hoy se dan la mano a través de esta emblemática mujer: la inolvidable Regina Pacini.

 

Já num registo de recolha e de memória, Thais Matarazzo, jornalista, musicóloga e colaboradora do Departamento Cultural do Clube Português de São Paulo, trouxe-nos a sua mais recente obra “Fado no Brasil”, tão representativa do “Fado Imigrante” que constitu uma das mais poderosas manifestações da identidade portuguesa da diáspora. A jornalista Eulália Moreno que também participa do livro, refere a justiça que esta obra presta às cantoras do Fado no Brasil nos seguintes termos:

 

 Essas vozes pioneiras aqui fizeram escola e constituíram sucessoras não esquecidas neste trabalho de recolha de biografias e memórias. São as vozes das muitas Marias do Fado no exercício dos seus ofícios e cumprindo o seu fado no país que as acolheu, cantando “até que a voz lhes doa” e no qual desenvolveram e aprimoraram as suas qualidades artísticas tornando-se uma referência obrigatória da cultura luso-brasileira, estrelas maiores nesta obra de Thaís Matarazzo que faz justiça a alguns nomes do panorama artístico luso-brasileiro, perpetuando a sua memória para as gerações vindouras já que a vertente do Fado Imigrante em terras brasileiras era uma lacuna somente agora preenchida pela autora com o rigor ao qual já nos habituamos pela leitura dos seus trabalhos anteriormente publicados”.

 

No mesmo registo, Aida Baptista apresentou a extraordinária obra de cultura popular açoriana de Ana Fontes que nasceu em 1931 na ilha de Sta Maria, Açores, numa família numerosa, casou por procuração e passou por uma breve experiência de emigração no Canadá. Neste fórum apresentou um projecto que promete resgatá-la do esquecimento:

 

Como era hábito na época, as mulheres nasciam destinadas a serem boas esposas, consortes de vidas nem sempre com sorte. Talhada neste figurino de mulheres - às quais dois anos de escolaridade bastavam para se saber ler, escrever e contar - Ana Fontes nunca se conformou com este paradigma. Por isso, a sua fraca escolaridade não foi impedimento para que tivesse escrito mais de vinte cadernos com milhares de quadras que, ao abordarem os mais variados temas, refletem expressões femininas de cidadania de quem nunca se deixou condicionar, nem pela condição do berço, nem pelo isolamento da ilha.  A par da escrita, entregou-se também à confeção de mais de seiscentas peças de artesanato - feitas dos mais diversos materiais reciclados -, que se encontram expostas nas diferentes divisões da sua casa.  Mulheres poetas populares e artesãs não são propriamente uma novidade no país e na diáspora. O que torna Ana Fontes particularmente diferente é o facto de, ao juntar as duas valências - a de poeta e de artesã -, descrever as suas peças com quadras reveladoras de uma genuína espontaneidade, como se os objetos, para além do enorme impato visual que provocam, ganhassem vida e dialogassem com ela.

 

Todos estes contributos reflectem as dificuldades de afirmação de mulheres invulgarmente dotadas de talento artístico nas sociedades em que vivem ou viveram e a responsabilidade sentida por outras em retirá-las do esquecimento. São casos em regra inigualáveis e de uma profunda densidade simbólica.  As fronteiras geográficas foram cruzadas por muitas destas mulheres da diáspora mas em comum persiste um sentimento de caminho ainda por percorrer, por uma questão de justiça perante o passado e de compromisso para com o futuro. As novas gerações encontrarão um terreno mais aplanado pelo esforço e determinação de muitas destas mulheres (e de homens que as acompanharam nesse desígnio de igualdade) que merecem ser relembradas e reconhecidas.

 

A segunda questão que merece também a nossa reflexão consiste em saber se as artes poderão ser um veículo com particular potencial para a afirmação da agenda da igualdade de género.

A cultura em sentido amplo é a realidade que define um país e uma civilização muito para além da sua sobrevivência ou da sua existência actual concreta. O património cultural – material ou imaterial – da humanidade é hoje encarado e protegido como elemento fundacional da nossa existência nas suas mais variadas manifestações.

Hoje, mais do que nunca, a virtuosidade de um país é medida não pela sua prosperidade material, muito menos pelo seu poder militar, mas pela capacidade do seu “soft power”, pela bondade das suas decisões, em suma, pela cultura que o define e que projecta no mundo.

Todos participamos dessa realidade múltipla, mas é sobretudo a um grupo mais restrito de artistas, pensadores ou homens de ciências várias que confiamos a perpetuação do esforço civilizacional, da sua memória e da ambição de novos avanços e aperfeiçoamentos.

É ainda recente o tempo em que o acesso das mulheres a esse grupo restrito foi consentido, em certos casos até estimulado. Mas não consta que as mulheres não estejam preparadas para agarrar esta oportunidade. A cultura em sentido estrito, enquanto produto das várias expressões artísticas, não suscita guerras de hegemonia e de poder como as que observamos no mundo político ou empresarial e que deixam invariavelmente as mulheres desamparadas nesses contextos. Porém, a cultura enquanto portadora de criatividade artística de um país é cada vez mais protegida e respeitada pelos poderes instituídos, como forma de expressão da alma do seu tempo e da marca que querem deixar para a posteridade. Ficaram registados os tempos em que pela primeira vez a Administração Kennedy abriu as portas da Casa Branca aos artistas de vários quadrantes para conjuntamente fomentarem e celebrarem o génio e a prosperidade da cultura norte-americana. Curiosamente pela mão da Primeira Dama Jacqueline Kennedy.

Hoje, a cultura é encarada como um poderoso meio de “soft power” utilizado pelos Estados nos seus esforços de diplomacia pública para afirmarem as suas identidades e promoverem as suas virtudes perante terceiros. Pelo nosso lado, temos nomeadamente a língua portuguesa e uma vasta literatura de expressão portuguesa que partilhamos com países irmãos unidos por fortes afinidades históricas e culturais e o “Fado” -  um género musical recentemente erigido a património imaterial da humanidade – que nos distinguem no mundo. Outros sectores têm conhecido um desenvolvimento extraordinário nas últimas décadas no nosso país e conquistado um assinalável prestígio internacional, designadamente a Arquitectura, o Design  e a Ciência e Tecnologia. Todos juntos são veículos duma estética colectiva com uma dimensão identitária que nos singulariza como povo, no país e na sua diáspora.

Numa era em que a Arte, a Ciência e a Técnica nas suas diversas expressões serão decisivas para navegarmos num novo mundo mais informado, mais exigente e inevitavelmente mais global, será interessante saber se esta evolução é acompanhada pelo esbatimento da tradicional divisão de papéis em função do género. Um reputado economista, presidente da Universidade de Harvard apresentou dados estatísticos que supostamente evidenciavam uma menor apetência das mulheres para a Ciência quando comparadas com os homens. Não sobreviveu ao impacto de tais declarações, acabando por ser substituído por uma mulher, a primeira na história daquela instituição com quase quatrocentos anos.  Os dados dos quais partiu seriam certamente científicos mas não os soube ler de acordo com os sinais dos tempos. Tempos em que as mulheres estão cada vez mais equipadas para dar o seu contributo e exigir a sua participação numa nova era em que apenas o talento, a criatividade, a competência e a persistência são determinantes. Há ainda barreiras sobretudo psicológicas a ultrapassar, mas hoje mais do que nunca as democracias definem-se também pela igualdade que conseguem assegurar aos seus cidadãos, igualdade de género incluída. 

Com este Encontro Mundial das Mulheres portuguesas da Diáspora esperamos ter proporcionado um espaço de partilha e de reflexão para estas questões onde quer que haja comunidades e mulheres portuguesas no mundo.  As mulheres das Artes terão de estar na vanguarda da reivindicação deste espaço comum e indiferenciado para homens e mulheres para a afirmação do progresso e dos valores e civilizacionais que defendemos para as nossas sociedades. À Associação da Mulher Migrante que celebra os seus 20 anos de existência o justo reconhecimento pelo trabalho feito e votos de muito sucesso para os projectos futuros.

 

 

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