domingo, 1 de janeiro de 2012

COMUNICAÇÃO DE MARIA LÚCIA DA SILVA BANDEIRA

A emigração no singular: a inaudita guerra de Laura

Antes de mais, gostaria de saudar a mesa e todos os presentes, e agradecer a oportunidade concedida para participar neste Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas da Diáspora. Felicito e encorajo a organização do evento. Formulo um agradecimento especial à Dra. Manuela Aguiar e à Professora Donzília Moreira.
A minha prestação neste encontro incidirá sobre a vivência de uma mulher e da sua família, salientando factos relacionados com a preocupação da formação dos filhos em contexto de emigração. Poderíamos ter focado outros aspectos das suas vidas, como por exemplo, as condições de trabalho, de habitação, de adaptação. Por que razão, então, salientar memórias da educação? Talvez por ser o aspeto mais presente, mais visível, mais circular.
Aceitar a memória como fonte produtora de testemunhos é aceitar tacitamente que uma linha muito ténue possa separar a sublimação do facto histórico. O tempo poderá ter estilizado algumas facetas dos factos sem, contudo, os destituir da sua veracidade, sem diminuir o alcance da sua profundidade.
Cultivar memórias, transmiti-las, partilhá-las é participar ativamente na construção da História e na (re)construção de histórias de vidas; é um dever cívico e moral.
O Salmo 78 intitula-se “Sem memória não há fidelidade”. Nele podemos ler e reter a importância do testemunho para as gerações vindouras:
«O que nós ouvimos e aprendemos,
O que nos contaram os nossos pais,
Não o esconderemos aos seus filhos,
Nós o contaremos à geração futura (…) »

No dia 3 de Junho de 1973, a grande lição de vida era dada aos filhos quando Laura embarcou no comboio, rumo a França. Saíram da estação de Espinho. Laura dera a cada filho um lenço branco para dizer adeus quando passassem perto da terra natal. Ficaram todos em filinha para acenar com o lenço à família, amigos e vizinhos que ficaram. Deve ter sido uma prova bem difícil para Laura; uma dor que os filhos ainda não podiam calcular, ainda não tinham olhos de alma para ver.
A passagem da fronteira foi aterrorizadora. Laura tinha ensaiado os filhos para o desfile decadente, mas redentor, da fronteira. Todos em fila, como se não se conhecessem, a passar à frente da polícia que se detinha, arma em punho, a vigiar e fiscalizar as milhares de pessoas que ali se aglutinavam, com olhares desconfiados, com fome de liberdade, de paz e de esperança… Não havia razão para que não corresse bem. Tinham os documentos exigidos pela Junta de emigração. As fotografias dos filhos de Laura estavam lindas no passaporte. Para o efeito, Laura tinha comprado roupa nova para ficarem bem apresentados. Aquele carimbo, com data de 3 de Junho de 1973, marcou o fim de uma vida e o início de outra. O único filho que tinha acabara de escapar ao fantasma da guerra do ultramar; não voltaria atrás para não fazer correr o risco de ser chamado. A guerra parecia não ter fim!
Laura leu, banhada em lágrimas, a primeira carta dos pais que falava de saudade. Seu pai passava o tempo sentado na soleira da porta de Laura. Sentia a falta dos netos. Sentia-se só.
A segunda carta vinda de Portugal trazia a triste notícia do falecimento do pai. Diz-se que morrera de saudade, na soleira da porta de Laura, com as chaves da casa na mão. Era véspera de São João. Desde então, nunca mais se festejou São João.
Em relação aos filhos, a primeira preocupação de Laura e do marido foi a de procurar uma professora de Português para que os filhos pudessem continuar a estudar português. A Professora Alice Albuquerque apareceu meses depois de José ter entregue uma abaixo-assinado no Consulado com uma lista de interessados em aprender a Língua.
Assim, a par do estudo na escola francesa, os filhos frequentavam a escola portuguesa e realizaram os exames ad-hoc da 4ª classe, do 9º e 11º anos. Quão importante foi esta formação em Língua Portuguesa!
A filha do meio, com apenas dez anos, tornara-se a escritora de cartas dos portugueses que ali viviam e que não sabiam ler nem escrever. Laura sentia-se orgulhosa da filha que, às quartas-feiras, lia notícias de famílias de São João da Madeira, de Vinhais, da Guarda, da Póvoa do Lanhoso e outras. As saudades iam e vinham, por carta. A menina quase decorara os textos ditados que se repetiam, inexoravelmente. Por vezes, tinha pena que as senhoras não soubessem ler nem escrever.
Da instrução que recebera, Laura era capaz de motivar os filhos para o real valor do conhecimento e do respeito que o estudo impõe.
Os filhos depressa aprenderam a falar francês; a santa inocência das crianças levara-as à rua brincar com outros jovens e com eles, foram aprendendo a falar a nova língua.
Laura nunca andara na rua; não aprendeu a falar francês.
Na aldeia donde partiram, não havia bibliotecas; a escola não emprestava livros. Mas ali, naquela aldeia de montanha, havia biblioteca, a escola tinha livros para emprestar. Os filhos de Laura liam, liam. Durante as férias de Verão, a menina que escrevia as cartas, procurava, na lixeira, livros que alguns deitavam fora. Os arrumos de uns, permitia o crescimento de outros! As noites de fim-de-semana eram passadas a ler revistas e outros livros, e as quatro filhas trocavam impressões sobre as leituras, sem saberem que estruturavam ali a sua formação. Por vezes, Laura tinha que desligar o contador da luz porque “as pequenas” liam toda a noite. Apercebera-se, um dia, que as meninas tinham contornado a questão com pilhas elétricas que escondiam debaixo da roupa da cama.
Certo dia, Laura recebeu em casa uma senhora que viera fazer perguntas para um estudo. Laura receava falar com estranhos, desconfiava sempre dos estranhos. Corria a década de 70. Viera-se a descobrir, em 2010, que a senhora das perguntas era a Doutora Maria Beatriz Rocha-Trindade, que recolhia dados para a sua investigação. Laura respondera ao inquérito.
Pacientemente, Laura via crescer o interesse dos filhos pelo estudo. Na escola, a filha tornara-se uma das melhores alunas, mas a mãe não o sabia; nunca ia falar com os professores; os filhos tinham que se orientar sozinhos. No entanto, nunca faltaram os livros e, quando o marido comprou para a escritora de cartas um dicionário – que livro grande! -, foi uma festa!
Contrariamente a outros imigrantes que ali viviam, Laura não obrigara os filhos a irem trabalhar cedo para ganharem dinheiro para a casa.
«Estudem até onde quiserem; mas se reprovarem, acabam-se os estudos!»
A escritora de cartas foi crescendo com o entusiasmo e a ansiedade do saber.
Laura ia várias vezes a Portugal visitar a mãe que estava muito doente. Relatava muitas aventuras presenciadas e vividas no comboio durante essas longas viagens.
Um dia, trouxera para a filha escritora de cartas, uma História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva. Foi o delírio! Da história da Língua portuguesa a Gil Vicente, Camões, Garrett, Eça de Queirós… tudo foi lido.
Laura nunca soubera as horas de prazer que a filha tinha com aqueles livros! Também não soubera que o estudo da Língua Portuguesa permitira à filha dar respostas brilhantes nas aulas de Francês.
A escritora de cartas foi alimentando a saudade; escrevia poemas que lia na rádio Altitude, rádio pirata para onde levavam os discos portugueses escondidos, num estúdio escondido. Carlos Albuquerque foi o impulsionador deste acontecimento. A direção da rádio, já legal, dera umas horas de Antena aos portugueses, ao domingo de manhã. Ali se construíra um templo à saudade; os imigrantes telefonavam a pedir e a dar informações de Portugal, participavam no espaço dos “Discos pedidos” onde o conjunto Maria Albertina, todas as semanas, cantava “Longe da terra distante, longe do seu Portugal”
Enquanto os acontecimentos se sucediam, a filha ia acariciando o sonho de estudar em Portugal. Os livros e jornais portugueses eram de difícil acesso. O marido de Laura dera um dia a informação de que a Michelin, onde trabalhava, tinha uma biblioteca com livros em português e noutras línguas para os imigrantes da fábrica. A escritora de cartas frequentou esse espaço onde, pela primeira vez, se deparou com uma biblioteca multilingue. Aqueles patrões deviam ser amigos dos seus empregados para pôr à sua disposição livros na língua de origem! Laura nunca tinha visto uma biblioteca; sabia porém que a filha passava horas a folhear livros, a percorrer estantes.
Os anos iam passando e, já com algum conhecimento das duas línguas, a filha fora convidada para fazer traduções de Certidões de casamento, de nascimento e de óbito, num gabinete de apoio ao imigrante.
A jovem ia trazendo para casa histórias de portugueses que não sabiam ler nem escrever, mas que precisavam daqueles documentos; e que queriam agradecer as traduções, pagando o que não lhes era pedido. Ali, o analfabetismo e a ignorância andavam de mãos dadas com a resignação e a humilhação.
Laura compreendia que a filha ficasse sensibilizada pela situação; ensinava a nunca ficar contrariada por ajudar os outros.
«Feliz de quem sabe, para si e para os outros.», dizia a mãe à filha.
A filha entendia a lição, mas continuava, como sempre, a achar triste o mundo do analfabetismo e da humilhação. Se estivesse ao seu alcance, ensinaria a ler e a escrever a todas estas pessoas!
Em 1983, a escritora de cartas, agora a frequentar o 12º ano, foi convidada a colaborar na realização de um documentário sobre os portugueses e o sentimento do exílio, para o canal televisivo TF1. O realizador François Ribadeau vinha de Paris, de quando em vez, recolher informações que a jovem ia selecionando. Laura proibira a filha de estar com o senhor; não sonhava porém que a jovem organizara todo o programa às escondidas dos pais, que desconfiavam sempre de estranhos. O programa foi um sucesso.
Na hora de fazer opções para o seu percurso de estudos superiores, a filha decidira estudar em Portugal e ser professora de Português e de Francês, de modo a, em consciência, ajudar a combater a tristeza do não-saber.
Laura continua a ter orgulho no percurso de estudos da filha.
Hoje, neste tempo tão estranho, Laura, após o regresso definitivo à sua terra natal, ouve as notícias e diz à filha que para o ano já não se ensinará línguas nas escolas, que o Francês vai acabar; que o ensino de Português em França está a acabar e que a situação é preocupante. A filha, tristemente, concorda; triste lhe parece esta circularidade dos factos; esta sombra da ignorância imposta, acompanhada de humilhação.
Laura e o marido receiam que a filha ouça o apelo da partida para fora; receiam que a filha, em cumprimento do ensinar e do saber, parta. Já há muito que não ouviam dizer que «Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão». A História parece repetir-se na vida de Laura.
A História é feita de vidas; a epopeia de Laura faz parte da História.

Maia, 25 de novembro de 2011



A emigração no singular: a inaudita história de Laura; por Maria Lúcia da Silva Bandeira
RESUMO
3 de Junho de 1973. Laura, como tantos outros portugueses e portuguesas, passou a fronteira, rumo a França. Levou os seus cinco filhos para os quais ela e o marido haviam planeado um futuro diferente daquele que Portugal lhes oferecia. A família integrou-se no seio da nova comunidade. Os filhos foram sempre motivados para o estudo; o pai trabalhava de noite e de dia, e Laura organizava a economia familiar. A convivência com a restante comunidade era reduzida; Laura nunca aprendera a falar francês, mas o percurso dos filhos na escola dava-lhe alento. A informação da revolução dos cravos chegara pela televisão a preto e branco. O casal suspirou de alívio: a guerra colonial acabaria; os filhos de Portugal voltariam para suas mães. O deles tinha escapado e teria sido essa a razão da partida do casal com os filhos: evitar que o filho fosse para a guerra.
Esta família, como tantas outras, constou de números para fins estatísticos sobre emigração. No entanto, cada português da diáspora apresenta vivências que os inquéritos e estudos não revelam; dramas e alegrias que a história ainda não registou porque as vozes não foram ainda ouvidas. Os filhos dos que ousaram partir têm agora consciência da proeza que foi a partida. De facto, eles foram tão longe e puderam dar aos filhos a visão de outro mundo; talvez a visão da fronteira entre a ignorância e o saber; entre a coragem e a inércia. Foi necessário partir para estar mais perto.
Laura é um caso entre casos.
Palavras-chave: partida, adaptação, comunidade, saber, estudo, educação, liberdade, regresso.

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