UMA MULHER IMIGRANTE COMO TANTAS OUTRAS Ilda Januário
Universidade de Toronto e CRIA – Universidade Nova de Lisboa
(Instalação)
Ilda Januário
14 de outubro de 2014
INTRODUÇÃO:
Tivemos o prazer, como comunidade, de ter em Toronto a visita das dirigentes da Associação
Mulher Migrante para celebrar o 40º aniversário da Revolução dos Cravos, na Universidade de
Toronto. Este evento deu-nos a oportunidade de pensar em algumas iniciativas para
apresentarmos aos estudantes e ao público luso-canadiano em geral.
Como pesquisadora que tem feito desde 1980 centenas de entrevistas com homens e mulheres
imigrantes, e não só, decidi escolher uma delas, muito pertinente, para acompanhar uma
modesta instalação preparada com objetos e fotos. Antes de dar a palavra a esta mulher
imigrante já falecida, passarei a enumerar os seus dados biográficos mais importantes:
Nasceu em 1920, no Continente, filha de lavrador abastado. Tinha uma irmã
Casou por procuração em 1947 e foi juntar-se ao marido nos Açores, onde teve os filhos
Era dona de casa e o marido controlador aéreo
O marido emigrou para o Canadá em 1961, aos 40 anos de idade
A entrevistada chegou a Montreal, em 1966, aos 46 anos de idade, com dois filhos
adolescentes. O mau relacionamento conjugal ocasionou-lhe um esgotamento nervoso
Trabalhou durante alguns anos num atelier de chapelaria e depois num laboratório a
encher frascos de comprimidos. Adorou estas experiências
Separou-se em 1972 e passou a viver da pensão de alimentos, depois da assistência
social e, por fim, da pensão de reforma. Por vezes cuidava de crianças ao domicílio.
Seu único luxo: passar o verão em Portugal na casa herdada dos pais
Viveu o resto dos dias sozinha, sendo mulher de um homem só, como afirmava.
Candidatou-se a um apartamento subsidiado para idosos
no Lar de Sta. Cruz de Montreal, onde residiu durante os derradeiros 20 anos de vida
Durante a última década raramente saía de casa. Com o apoio do filho, foi cuidada por
senhoras portuguesas, que trabalhavam por turnos.
Faleceu em 2008, aos 87 anos de idade. Repousa em paz no cemitério da sua aldeia.
Seguem-se as respostas dadas pela idosa no decorrer de uma entrevista feita no âmbito de um
projeto de pesquisa que teve lugar em Montreal no início dos anos 2000, tendo ela pouco mais
de 80 anos de idade. A entrevista foi gravada em cassete, transcrita e adaptada.
“Todo o homem tem duas mãos, como a mulher. Quanto a inteligência, dizem
que o homem tem um pensar mais forte e que às vezes a mulher é mais vaidosa com a
aparência e puxa mais para se embelezar e andar mais bem vestida, mas, a inteligência,
os dois a têm, um mais, outro menos, e às vezes a da mulher é superior à do homem. Os
dois sabem pensar e agir, um melhor ou pior do que o outro. Se um fala o que outro
pensa, é melhor.
Penso que se a mulher tem um marido bem-intencionado de trabalhar para a
casa e não estragar dinheiro, como o meu fazia, e a mulher vê essa qualidade no marido
para comprarem uma casa ou dar estudo aos filhos, ou ter um carro melhor para o bem
de todos, faz bem entregar os filhos pequenos a uma pessoa para os cuidar. Agora, se a
mulher vai ganhar o dia fora de casa, deixa os filhos mas vê que o marido gasta o
dinheiro mal gasto, então não deve trabalhar. Se ele não lhe der dinheiro para
sobreviver, que faça como eu, ponha-se ao fresco!
A pensão que ele me passou a dar [depois da separação] era só para mim,
porque eu já tinha mais de 50 anos e vivia doente, foi só por isso, enquanto ele
trabalhava e tinha saúde. Não ficou a dar nada aos filhos porque o menor ficou com ele
e a mais velha já trabalhava e tinha mais de 18 anos, e estudava.
Eu não gostava de ter trabalhado em Portugal, porque não valia a pena e porque
ele gastava o dinheiro com outras coisas, não para o bem de todos. Depois de um ano
de aqui chegar, que vi que ele não procedia bem, foi uma pena não me ter separado
imediatamente. Tinha mais saúde e melhores nervos, que estraguei ao lado dele
durante 6 anos. Tenho tido uma vida muito mais feliz desde que me separei e fiquei
numa casa sozinha. (…) Se tenho tido mais saúde, mais equilíbrio no sistema nervoso,
tinha trabalhado até à pensão de reforma porque os meus filhos já estavam grandes.
Em Portugal, eu era de classe média, porque os meus pais eram proprietários,
traziam pessoas a trabalhar e a gente estava mais em casa, já tínhamos um certo nível,
não éramos mandados, mandávamos.
Sou de classe média aqui, só vivo da minha reforma. Não tem nada a ver se sou
imigrante ou não. Porque quase todos aqui ou são imigrantes ou filhos de imigrantes.
Não me sinto desconsiderada por ser imigrante porque a maior percentagem são
imigrantes. É uma palavra vulgar. Nunca me ressinto disso.
Eu só gostava de ter tido uma casa aqui. Como tantos o fazem e chegam sem
nada! Nunca fui ajudada pelo meu marido e eu não ganhava muito. Se pudesse viver
tudo de novo, mudava não saber inglês e francês, porque me estraguei dos nervos.
Sempre puxei para ir à escola, mas a vida e os olhos também pioraram e, mesmo
dizendo às professoras para não me perguntarem para eu ler, era só para ouvir, porque
já não posso ler. Eu tinha vontade ardente de saber mas, estragada do sistema nervoso,
nunca consegui fazer. E a outra coisa que eu mudaria era a falta de comunicação com as
pessoas estrangeiras. Porque de resto, fico sempre pensativa: o que ele me diz? Isto
também enerva. Como me sentia só e triste, chegava-me para os portugueses, com
quem desabafava.
Gosto da comunidade portuguesa aqui: são muito trabalhadores e religiosos,
educam os filhos o melhor possível, eles transgridem mas não é por falta dos pais
quererem que sejam boas pessoas. Os portugueses são como todos os outros
imigrantes, nas outras comunidades também se fazem mexericos. Os portugueses são
dos que vão menos a tribunal. Mesmo os que trabalharam, muitos já estão na pensão
de reforma, como eu.
mesma maneira, não interessa a classe: trabalhar, poupar, guardar para amanhã, não
nos metermos em despesas e em dívidas. Eu estou naquela casa do governo [lar], onde
há só portuguesas e vejo que todas temos a mesma mentalidade.
que viviam mal e eu sei que foi assim. O Salazar não ia pedir às nações grandes para
nos emprestar ou dar, como fazem agora os ministros, por isso é que dizem mal dele
mas nesse tempo não se usava. Amanhava-se com a prata da casa. Depois do 25 de abril
é que se começou a fazer isso. Os ministros vão pedir dinheiro emprestado às nações
grandes, para eles e para os pobres.
instrução, eles eram ciumentos, ganhavam pouco mas Portugal que é das mais
pequenas nações, claro que não se vivia lá bem. E a gente vê que elas sofreram
bastante. Não é o meu caso, que vivi melhor em Portugal do que vivo aqui. Eu, no
tempo dos meus pais, vivi bem. Não luxava, nem estragava e tinha para vestir o que me
era preciso e aqui não me aconteceu isso, especialmente no calçar e no vestir.
mesmo com autorização. Não gosto de transgredir ordens ou o dinheiro de ninguém.
Com o meu marido era a mesma coisa. Eu sentia-me responsável pelos filhos, tinham
que se apresentar e muitas vezes não podia vesti-los nem calçá-los.
luxos e que nada leva com ela, ter o pão de cada dia e um pouco mais. (…) Os meus pais
pensavam igual, só que eles não se entendiam sobre o trabalho: vinha chuva, o milho
estava na eira, ela é que tinha culpa de o milho se molhar, porque o recolheu tarde de
mais, ela é que tinha culpas de tudo. Mas era assim o homem antigamente, pensava que
podia dizer o que queria e mandar tudo, podia falar e nada o afetava, mulher e filhas
tinham que se calar.
maneira, tem que trabalhar a mulher e o homem, tem que haver um grande
entendimento entre eles: a mulher a ver se o homem a está a explorar, o homem se a
mulher o está a explorar. Desejo felicidades a todas as mulheres porque eu agora estou
feliz, porque o recebo sozinha, gasto o que tenho que gastar e não dou satisfações a
ninguém. O tempo melhor da minha vida é este, apesar de estar doente, não estou
contrariada. ”
Os da nossa idade, criados no tempo de Salazar, pensamos quase todos da
A mulher portuguesa achou-se explorada no tempo de Salazar. Elas queixam-se
Algumas mulheres teriam sido mal tratadas, sim: a mentalidade era fraca, sem
No tempo do meu pai tinha que lhe ir pedir, não gostava de ir à carteira dele,
A pessoa deve pensar o melhor que pode sobre esta terra: não viver debaixo de
Por isso eu digo, agora é outra ordem de ideias, a vida agora está de outra
ANÁLISE DA ENTREVISTA
Se, por um lado, os temas que ressaltam exemplificam bem a visão comum que tiverem estas
mulheres imigradas de primeira geração - independentemente da classe social -, por outro
lado, a entrevistada teve uma tomada de consciência de cariz feminista que resultou da
emigração, da separação conjugal e do próprio amadurecimento pessoal. Passo a pôr em relevo
algumas destas constatações:
Os dois géneros têm inteligência semelhante, embora por vezes desigual no casamento
À mulher fica bem trabalhar fora de casa e dar os filhos a guardar, desde que haja um
plano comum para melhorar a economia familiar; caso contrário, a mulher deve ficar
em casa com os filhos
Perante certos abusos dentro do casamento, deve optar por se separar
A experiência de trabalho remunerado é libertadora
A aprendizagem da língua ou línguas oficiais do país, tantas vezes descurada pelos
imigrantes portugueses, é necessária e desejável
A comunidade portuguesa imigrante é digna de louvor e constituiu uma zona de
conforto e de apoio para os que emigram
Ser imigrante no Canadá não é sentido como um estado de inferioridade
Os imigrantes de classe média sentem por vezes maiores dificuldades de adaptação e
menor sucesso financeiro do que os de classe trabalhadora, nomeadamente no que diz
respeito à compra de casa
As mulheres portuguesas foram marcadas pelo inegável machismo que se vivia no
tempo de Salazar. O antes e o depois da Revolução são resumidos sucintamente, tanto
do ponto de vista da condição das mulheres como da situação económica do país, ou
seja, a deplorável dependência de Portugal das grandes nações, no pós-revolução
A terceira idade solitária pode ser vivida com conforto e satisfação, mesmo quando a
saúde falta, sobretudo se facilitada pelo acesso a alojamento subsidiado. Pode ser o
tempo de uma reflexão e tomada de consciência sobre o que a mulher se recusa a
tolerar ou aceitar quando era mais nova e tinha filhos a seu cargo.
CONCLUSÃO
A literatura sobre as migrações femininas pode confirmar estas constatações, que não
proponho passar em revista nesta comunicação. Nela, as palavras da entrevistada e a instalação
constituem as principais facetas que quis explorar no espaço que me foi dado no programa
deste encontro com as responsáveis da Associação Migrante, as Doutoras Manuela Aguiar e
Rita Gomes.
A entrevista feita na terceira pessoa com esta mulher foi, afinal, aquela a quem tive a honra de
chamar mãe, Ilda Natária de Jesus, uma imigrante como tantas outras. Foi precisamente neste
dia, a 14 de outubro de 1961, que começou a saga dela, ao despedir-se do marido que emigrou
para Montreal.
Convido-vos, então, a examinarem a pequena instalação que dará mais substância às palavras
que transcrevi e convosco partilhei. Como já foi investigado nas ciências sociais, o sentido da
leitura na página afeta a representação cultural do tempo: os eventos mais tardios são
representados à esquerda e os mais recentes à direita (Fuhrman & Boroditsky, 2010).*
(*) Fuhrman, O. & L. Boroditsky (2010). Cross-Cultural Differences in Mental Representations of
Time: Evidence From an Implicit Nonlinguistic Task. Cognitive Science 34 (2010) 1430–1451
Fotos 1 e 2: vista geral da instalação
Fotos 1, 2 e 3: Secções e legendas
Em terceiro plano: Peça de enxoval, foto da aldeia natal e poema do noivo (transcrito na página final).
Nos Açores, com o primeiro filho, em 1950
Em segundo plano: Mantilha, objetos religiosos e fotos:
com a irmã, em solteiras, e na casa dos vinte anos, já casadoira.
Em primeiro plano: missal, sendo a missa do domingo a principal distração da semana.
Peças expostas: camisa de noite, lençol e fronha de almofada em algodão.
As tarefas de solteira incluíram fazer o enxoval.
Em terceiro plano: Foto já referida e outra tirada antes da emigração, nos anos 1960: com os pais, irmã, tia, filhos e
O relógio invoca a passagem das gerações e o facto de que “O tempo tudo traz e tudo leva”
Em primeiro plano: bata branca para o trabalho no laboratório, que adorava; vestido e colar.
sobrinho em frente da casa da quinta. Foto da casa em Portugal.
Em segundo plano: Fotos com o primeiro neto no Canadá, e com o filho
Apesar da obesidade, caprichava no vestir e não dispensava o bâton.
Em terceiro plano: mala de mão e lenço favoritos, o chá Bekunis e derradeira foto com cartão de pêsames
Em segundo plano: Fotos do apartamento em Montreal (na horizontal) retratado com a sua máquina Polaroid.
Nos últimos anos o telefone passou a ser o seu único meio de comunicação com o mundo exterior.
Em primeiro plano: era excelente cozinheira e, enquanto pôde ler, recorria a esse clássico da culinária portuguesa,
Amava o Canadá e o seu apartamento em Montreal.
O Livro de Pantagruel, versão original de 1950; e ao livro de endereços.
Por fim, cinta inteira com a maioria dos seus óculos.
A forte miopia, a obesidade e o casamento infeliz (piorado pela emigração) agudizaram vários problemas de saúde.
A tensão alta tardiamente tratada e a degenerescência macular baixaram-lhe a visão para 25%. Foi o fim da sua
existência como mulher que reassumira a sua autonomia em contexto migratório.
Canção de amor
À menina Ilda Natária
Vai tecendo a renda
Do nosso enxoval
Com agulha de aço
E áureo dedal
Vai tecendo, vai
Meu bem, minha amada
Com meu coração
Que é branca meada
Olha meu amor,
Vai bordando bem
A roupa daqueles
De quem hás-de ser mãe
Toma lá minha alma,
Meu bem, minha amada
Faz dela que é branca
Uma branda almofada
Faz de mim se podes,
Um berço a embalar
Que trago a minh’alma
Sem poder parar
Tece, vai tecendo,
Minha real senhora,
Na roca, as estrigas,
De luar e aurora
Sapatinhos brancos
Tu hás-de tecer,
Ao luar dos olhos
Que te estão a ver.
E compondo irás,
Até de manhã,
A touquinha branca
Da mais fina lã;
Como assim também,
Muito de mansinho,
Os lençóis e as fraldas
Do mais branco linho
Vai tecendo enquanto
Eu fico a velar
Pra falar contigo
Para te animar
Dar-te o braço quando
Pra que dormir possa
Quem não pode mais
E ante novos céus
Rasgados, abertos
Contemplem pra sempre
Estes olhos meus
O mesmo que os anjos
Na visão de Deus.
Repoisar-te vais,
A. Vieira Januário in Samouco (1996)
28-08-1943 (p. 23-24)
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