quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

AIDA BAPTISTA ILHANA

Ilhana
Há um arquipélago há muito tempo semeado num espaço a meio do atlântico. Uma das nove ilhas desse arquipélago recebeu nome de virgem. Talvez por isso haja muitas vozes femininas a habitar o tempo e o espaço dessa ilha. Mas há vozes que não se querem caladas nem esquecidas. Na ânsia de se fazer ouvir, uma há que dita memórias criadas num tempo de palavras antigas. E sente uma vontade inquieta de que outros leiam essas memórias escritas em repetidas noites de solidão e de insónia. A atravessar o tempo e o espaço, uma candeia faz par com um candeeiro a petróleo a iluminar o nascimento de histórias que teimam em conhecer a luz do dia.

A dona dessa voz é uma mulher que vive no silêncio azul da ilha com nome de virgem. Essa mulher, que tem o nome da mãe da virgem - Hannah, em hebraico - e apelido Fontes, de onde brotam as nascentes da sua imaginação, nunca concebeu um menino por obra e graça do espírito santo, apesar de ter nascido em terras onde o ceptro, a coroa e a pomba são a trindade de culto. Não concebeu menino, mas embala nos braços cadernos de quadras e peças de artesanato que, ao som de canções de ninar, contam a história da ilha. Porque esta mulher, apesar dos anos que carrega, insiste em escrever histórias para que um dia se saiba como se vivia numa ilha de onde tantos partiram em busca de tempos e espaços com outro presente e melhor futuro.

Foi nesta ilha que Ana Fontes viu morrer seus pais e embarcar irmãos para a América e a Califórnia porque, para ela, América e Califórnia são duas geografias distintas. Órfã de pais, amputada de irmãos e sobrinhos, buscou no Canadá um homem e companhia. Casou por procuração com quem apenas trocara saudações de olhos postos no chão: bom dia e boa tarde apenas, porque mulher honrada não saía à rua depois do bater das trindades.

Mas quis casar em Fátima, terra de devoção, onde a virgem aparecera a crianças da sua condição, em tempo e espaço de inocência. Foi-Lhe pedir a bênção que com ela viajou na mala do enxoval com que iniciaria a vida de mulher casada.

Nesta ausência breve de dois anos no Canadá, tentou esquecer a sua ilha - Santa Maria - mas a voz do mar foi mais forte e arrastou-a na corrente do regresso. Passados uns anos, perdeu o marido que foi a enterrar no mesmo chão da ilha que lhe servira de berço. De novo só, no mesmo espaço mas num outro tempo, está agora à espera, teimosamente à espera que a morte, já várias vezes anunciada, a devolva ao pó de que ambas - Ilha e Ana - são feitas, numa fusão ilhana que perdurará para além dos tempos.

Certas noites, numa hora marcada, vozes de familiares distantes - irmãos, irmãs, sobrinhos - quebram o silêncio da casa. O fio do telefone faz-lhe o milagre de poder falar com um mundo para além do espaço redondo da sua ilha - o da família que, com o passar do tempo, vai crescendo em descendência que ela não conhece, mas encolhendo nos afectos que ainda conhece. Mas nunca lhes perdeu a conta, habituada que foi a tomar conta de tudo quanto ainda era seu. Para isso lhe serviram os dois anos de escolaridade que a escola lhe deu. Só dois, porque aos pais faltou o dinheiro para o exame que certificaria os quatro.

Viúva de marido e sem descendência directa, deseja apenas que nunca abortem os sonhos de que esteve grávida uma vida inteira. Porque se houve um tempo para semear, haverá agora um espaço para colher.
AIDA BATISTA
Professora aposentada, ex-leitora do Instituto Camões
Natural de Pinheiros, residente no Sardoal

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