quinta-feira, 30 de abril de 2009

DRª MANUELA AGUIAR Mulheres Migrantes - Trabalho Profissional e Intervenção Cívica

A emigração muda, profundamente, a vida das pessoas, homens e mulheres: muda o relacionamento entre eles, na família, na sociedade, com a terra de origem e de destino, com o mundo dos trabalhos.

É verdade em todos os tempos e para todos os povos e nós sabemo-lo por tradição oral, por documentos oficiais, relatos de imprensa, pela experiência de contemporâneos, pelos relativamente poucos estudos sistemáticos que sobre o tema se têm levado a efeito, numa perspectiva comparativa. (1) (2)

Nesta aventura portuguesa sem fim à vista – historicamente, para o Brasil, os EUA, Hawai, Demerara, Argentina, mais tarde para os cinco continentes – o mais intangível, o menos reconhecido é o papel da mulher, a sua quota parte num movimento que foi, largamente, dominado pelo estereótipo masculino, muito embora a proporção de mulheres tivesse aumentado, ao longo do século XIX, atingindo cerca de 30% no início do século passado e sendo, desde as décadas de 60 e 70, de quase 50%. (3)

A componente feminina quando existia em número significativo – ou passava despercebida ou levantava enormes objecções, por parte da “inteligentzia” e do Estado – que não se coibia de tentar limitá-la, através de regulamentação discriminatória.
Elucidativas da percepção geral sobre os inconvenientes da expatriação, das mulheres para políticos e, para cientistas, comentadores são as posições de Emygdio da Silva e de Afonso Costa – na dupla veste de responsável político e, em outra, menos conhecida, de autorizado especialista neste domínio – a considerar a emigração feminina como uma depreciação do fenómeno migratório. (4)

A este juízo não era, como se constata, alheio o facto de a emigração familiar para o Brasil, os EUA, o Hawai, provocar uma inevitável diminuição de remessas e prognosticar o provável enraizamento definitivo no estrangeiro. E assim, ainda que negativamente relevada, a emigração feminina é vista como importante – tão importante que “de per si” pode transformar a natureza do projecto migratório, reconvertendo-o de temporário, em definitivo ou, se não definitivo, mais prolongado. E pouco contava então, numa concepção comum a homens bem pensantes e bem intencionados, a felicidade, a segurança e o sucesso individuais e familiares, quando em oposição (como supunham…) aos interesses colectivos ou do Estado.

2 – A situação das mulheres emigradas, como indivíduos, como cidadãs, não foi, no passado, objecto de particular interesse, de investigação rigorosa, nem a nível de cada país ou grande região, nem a nível global.

Não o foi pelos que se integravam em correntes economicistas (medindo e quantificando em divisas as vantagens da expatriação de trabalhadores) mas também não o foi pelos que se envolveram na luta pelos direitos das mulheres.

Podemos perguntar: porquê? Talvez porque os problemas específicos deste grupo de mulheres se tenham diluído, por um lado, no movimento feminista – movimento social forte e influente desde o último quartel do século XIX (embora mais em outros países do que entre nós, apesar do esforço de uma elite feminista, que nos legou obra, pensamento estratégico e exemplos de determinação e coragem, mas não logrou organizar-se como grupo de pressão…) e, por outro, no domínio mais vasto dos movimentos migratórios, onde o homem ocupava o lugar central, no campo da observação e análise do fenómeno, enquanto a mulher só lateral ou indirectamente via reconhecida a sua presença, quer na decisão de partida (solitária) do companheiro (como decisão comum, que, quase sempre, é…) quer na alternativa de o seguir, no imediato ou no médio prazo.

O panorama não se modificou, substancialmente, até à segunda metade do século XX. A questão feminina, neste domínio, ganhou maior visibilidade no fim de um ciclo de “boom” económico, de desenvolvimento continuado, entre o pós guerra e a crise provocada pelo chamado “choque petrolífero” de 1973-74. É então que a oferta de emprego baixa drasticamente e os mercados de trabalho se fecham aos homens, enquanto as fronteiras se abrem às mulheres (e filhos), a título de reunificação familiar – reclamada e consentida em nome dos direitos humanos fundamentais (face às concepções do início de novecentos um verdadeiro “avanço civilizacional…”.

É uma conjuntura inteiramente nova, e que se irá prolongar por largos anos, caracterizada pela “feminização” das migrações.

Porém, numa primeira fase, ter-se-á mantido, como preocupação maior ligada a esta imparável inversão da proporção dos sexos no êxodo migratório, o receio pela sorte das mulheres no país de destino, como estrangeiras mais vulneráveis, mais isoladas, menos capazes de adaptação cultural e económica. Creio que subsiste ainda a ideia de que elas estão talhadas para ser objecto de uma dupla discriminação: como imigrantes, face aos homens e mulheres do outro Estado; como imigrantes, face aos homens e mulheres do outro Estado; como mulheres, face aos homens imigrados. (5)

Oriundas, na sua maioria, de meros meios rurais, com deficiente formação escolar e profissional pareciam, de facto, condenadas a ocupar os últimos lugares da escala no mercado de “mão de obra”, os de mais baixos salários e menores responsabilidades. Ou pior ainda: ao desemprego, que as deixaram na dependência dos maridos e confinadas no “guetto” familiar.

Nos inícios de 80, os resultados de um inquérito pioneiro, conduzido pela Comissão da Condição Feminina, apontavam, como se esperava, para uma percentagem muito elevada das emigrantes portuguesas, que partilhavam dos preconceitos contra a reivindicação de um papel mais assertivo e igualitário no interior da família e numa ocupação fora de casa.

Estamos confrontados com um pano de fundo onde se projectavam elementos que pesavam, todos, negativamente na previsão dos trajectos migratórios femininos – e que tinham, note-se, fundamento na realidade, ainda que numa realidade estática – sem atender aos que poderiam surgir em função de novas dinâmicas de integração, em sociedades mais prósperas, mais modernas e mais igualitárias, de cujos direitos e liberdades – algumas e, progressivamente, cada vez mais – haveriam de aproveitar.

No começo, os obstáculos surgiam como intransponíveis.

Não se acreditava na atracção exercida por diferentes formas de viver os papéis masculinos e femininos, na família e na sociedade, sobre os nossos emigrantes. Porém, conhecidas as suas tão glosadas capacidades de convívio e de colaboração com diferentes povos, bem podíamos ter previsto as mudanças de mentalidades e de atitudes que iria, em tantos casos, verificar-se – por mimetismo, por adesão natural, pela vontade de ser aceite e respeitado pelos outros…

Neste contexto, a mulher ganha consciência de direitos e de causas que ignorava. Redescobre-se, descobrindo novas maneiras de ser mulher, mãe, trabalhadora. (6)

É, pois, fundamental, acompanhar o percurso da mulher migrante em períodos sucessivos e realçar o circunstancialismo mais ou menos favorável à sua ascensão nos vários círculos em que se move.

3 – Para historiar a evolução do estatuto e das realizações das mulheres nos núcleos de emigração, havia que ouvi-las falar de si: como sujeitos do seu destino, conscientes de problemas, de dificuldades e virtualidades de actuação, no plano individual e colectivo.

A primeira audição mundial de portuguesas da Diáspora aconteceu em Junho de 1985, por iniciativa da Secretaria de Estado da migração, e trouxe a Portugal (Viana do Castelo) uma elite, que então despontava, de dirigentes associativos e de jornalistas.

A proposta para a organização desse grande Encontro foi aprovada, como recomendação ao governo, na secção regional do CCP (Conselho das Comunidades Portuguesas) efectuado em Outubro de 1984, em Danbury, Connecticut. (7)

Uma das constatações do Encontro (que, segundo opinião dos participantes vindos de todo o mundo, expressa nas conclusões, terá sido o primeiro do género convocado por um governo de um país de emigração) é a existência de uma grande heterogeneidade de situações, no que respeita à inserção das migrantes em diferentes sociedades, de emigração recente ou antiga – umas muito mais favoráveis ao emprego e ao empreendedorismo feminino do que outras.

Em qualquer caso, a capacidade individual, a vontade de participação cívica e profissional, é um dado de decisiva relevância. Se as mulheres permanecem isoladas no interior da sua casa, ou mesmo do seu grupo etário, como aproveitar os direitos e as oportunidades que uma sociedade avançada lhes oferece? Como escapar a um “duplo guetto” familiar e social? (8) Provavelmente não fazer o seu caminho entre dois mundos, numa linha de fronteiras psicológica e cultural, que não ultrapassam, de vez, mantendo distâncias no contacto com os naturais do país, por dificuldades de domínio da língua, de compreensão das facilidades do novo meio. O “low-profile” – o perfil das portuguesas como as viam numa pequena comunidade rural de França (corajosas, laboriosas, apagadas), nas conclusões finais, como retrato datado de uma geração. (9)

A aprendizagem da língua, o exercício de uma actividade profissional remunerada, exercida no exterior do lar, o contacto, o diálogo, a convividalidade com mulheres e famílias da sociedade de acolhimento são indispensáveis para a transformação da mentalidade e de condutas. (9)

Outro aspecto abordado no “Encontro” foi o do estatuto da mulher emigrada no interior das organizações do seu próprio grupo étnico – na medida em que estas contribuem para a criação de um espaço cultural, em que se “transplanta” a sociedade de origem (um fenómeno de “extra-territorialidade).

Haverá, em principio, ritmos diversos de progressão das portuguesas na sociedade estrangeira (onde essa progressão se verifica…) e naquela que podemos considerar “sociedade portuguesa” prolongada em comunidades, (vistas como unidades sociais coesas e dinâmicas, animadas por um projecto de futuro e formadas, essencialmente, por uma rede associativa forte e extensa). (10)

É com a chegada das mulheres, de famílias inteiras, que o associativismo ultrapassa a sua fase inicial de mero centro de convívio, café, tertúlia para adquirir a vertente cultural, de guardião de tradições, de modos de ser e de estar colectivamente e de persistir e sobreviver na cadeia de gerações. É com a presença da mulher que clubes e centros associativos se tornam a “casa comum” portuguesa, a sede de uma vivência comunitária, animada pela música, pelo folclore, pelas festas populares, pela gastronomia, pelo teatro, exposições, palestras, cursos de língua pátria…

Todavia, neste associativismo que podemos chamar “misto” – por contraposição ao associativismo feminino – era então, e quase três décadas depois ainda é, maioritariamente liderado por homens. As mulheres, mesmo as que, no estrangeiro, se destacaram na profissão e na intervenção cívica, vêem-se subalternizadas nesta espécie de retorno ao “mundo português”.

A mulher retrocede ao papel que tem, não na família “moderna” em que se insere, mas na família tradicional… A arcaica e rígida divisão de tarefas é a que rege aquele espaço associativo – como se este quisesse propiciar o regresso ao país e ao país do passado: conserva-se tudo, incluindo anacronismo no relacionamento entre os sexos. (11)

A primeira reacção a este estado de coisas – que se manifesta nas comunidades nos quatro cantos do mundo, a indicar a espontaneidade, a vontade de “regresso às origens”, neste particular aspecto em desfavor da participação feminina… - foi a criação de organizações próprias. São dos fins do século XX as pioneiras sociedades fraternais da Califórnia. Hoje, para além dessas seguradoras, de enorme dimensão, podemos referir várias esplêndidas instituições, nascidas no século XX (segunda metade): a “Sociedade Beneficente das Damas Portuguesas” de Caracas, a “Liga da Mulher Portuguesa” da África do Sul, a “Federação das Mulheres Portuguesas” de Piko – com sede em Estocolmo – ou, a mais recente, a “Associação da Mulher Imigrante Portuguesa” da Argentina (criada em 1998). (12) (13)

Terá futuro o associativismo feminino?

Creio que a resposta será dada, em definitivo, quando a participação de mulheres e homens no associativismo misto atingir níveis próximos da paridade. É natural que, então, as instituições femininas acabem por se diluir no “mainstream”, por manter interesse histórico ou simbólico. Mas para já, a paridade é uma meta longínqua. E, a meu ver, todos os meses são bons para fomentar uma maior intervenção cívica das mulheres – em organizações próprias, ou “mistas”, e dentro destas, eventualmente, em áreas específicas.

O diálogo e debate sobre a questão de género estão no seu ponto alto – porque nunca a esperança de obter resultados foi tão grande.

A organização de reuniões internacionais - como as que se vem efectuando década a década - têm sido um instrumento eficaz para a tomada de consciência dos problemas e a busca de soluções. Tem permitido um balanço da evolução verificada e do seu diferente ritmo nas várias comunidades, a tendência para uma maior visibilidade do papel da mulher e para a dinamização que pode trazer a um dirigismo, que em algumas partes do mundo, parece em crise de afirmação.

É no continente norte-americano que os progressos são mais notórios, sobretudo em organizações de juventude. O rejuvenescimento conduz aí, em linha recta, a paridade – o que não é necessariamente verdade em outros continentes. (15)

Mulheres e jovens de ambos os sexos, têm sido, genericamente, marginalizados nas associações mais tradicionais – e, por isso, constituem uma reserva que não pode ser desperdiçada, sobretudo numa conjuntura em que crescem as dificuldades em garantir militância e adesões.

Neste universo, muito heterogéneo (com crescimento e até nascimento de novos centros associativos e o declínio de outros…), em tempo de grandes mutações e incertezas, é um sinal dos tempos – ver mulheres à frente de algumas das mais antigas e prestigiadas associações nas comunidades mais “improváveis”.

Por exemplo, na Argentina, no emblemático “Clube Português” de Buenos Aires, ou na quase centenária “Associação de Comodoro” – Rivadávia.

É também no Equador, no Hawai, na América do Norte (em Mississauga, Toronto, Montreal, Vancouver, San Diego, Elizabeth, N.Y), na Europa, no Brasil (não ainda nas instituições centenárias, mas em Câmaras do Comércio ou Elos Clubes), na Venezuela, na Austrália. E até já em “Academias de Bacalhau” que começaram por ser um paradigma de associativismo especificamente masculino (16), já há mulheres presidente de Academias.

Conhecemos casos pontuais que somados representam uma alteração significativa. A quebra de um tabu, mas num quadro ainda de excepcionalidade e não absolutamente transparente.

Faltam-nos dados rigorosos globais actualizados periodicamente. Por isso, nos “Encontros para a Cidadania” em sido proposta a ideia da criação de um “observatório” para a igualdade (17), ao qual caberia, entre outras finalidades, a de registar os cargos e actividades das mulheres no movimento associativo, sem esquecer as suas realizações à latera do poder formal das direcções, por exemplo em organizações “satélites” ou redutos que lhes estão reservados, como os femininos, ou de senhoras auxiliares, comissões femininas ou os “comités de damas (em países de língua castelhana”). (18)

3 – Partimos de conceitos e preconceitos sobre o destino das mulheres nas comunidades da emigração que, algumas décadas decorridas, tivemos de considerar em larga medida, infundados, pela história das suas vidas.

E não porque não tivessem deparado com situações de discriminação, sob a forma previsível e prevista (isto é, de relativo desfavorecimento para as mulheres e homens do país, assim como aos homens emigrantes).

Porém, mesmo nesse condicionalismo, a simples possibilidade de exercer uma actividade remunerada, deu a muitas mulheres imigradas, uma independência e benefícios materiais, a que não poderia ter aspirado na sua terra. E ganha, com isso, um estatuto de igualdade (ou quase igualdade) na contribuição para o nível de vida familiar (19 (20)

Porque errou a previsão comum?

Creio que por erro de perspectiva, ao não tomar, como referência para aferação, as mulheres portuguesas não emigrantes, as que não tiveram a oportunidade de testar as suas capacidades num contexto de maior abertura à igualdade dos sexos.

Neste quadro de comparação, na maioria dos casos, a mulher emigrante é, afinal, uma dupla vencedora.

Como emigrante, porque pertence a uma “geração de triunfadores” e contribuiu decisivamente, como diria Eduardo Lourenço, com independência, para o sucesso do projecto de emigração e a ascendência alcançada na família e no exterior.

Como mulher, porque soube ultrapassar a distância entre a sua contradição anterior e as possibilidades reais de emancipação, que a emigração lhe permitiu, pelo trabalho independente e pela valorização do seu papel na família e na sociedade

Maria Manuela Aguiar

2 comentários:

  1. Esta intervenção foi incluida na referida colectânea sobre as mulheres emigrantes e o trabalho, dirigida pela Profª Doutora Rosa Simas, publicada em português e inglês. As traduções para o inglês, da autoria da Profª Simas, são somplesmente esplêndidas - confesso que a versão do meu texto que prefiro é a traduzida por ela!
    O livro foi lançado na Universidade dos Açores, naturalmente, pois aí a Profª tem a sua cátedra, e daí são muitos dos colaboradores.
    Não foi um lançamento igual aos outros: foi um colóquio, que contou com a maioria dos participantes na iniciativa, como oradores, tendo, assim, a oportunidade de apresentar, de viva voz, as suas teses e de as debater com a audiência - e uns com os outros.
    Parece-me um esquema perfeito para divulgaçâo dos textos do nosso encontro intercontinental de Espinho, sobre as Mulheres da Diáspora , assim como dos do blogue Mulher Migrante em Congresso!
    Os bons exemplos são para seguir.

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  2. Esta intervenção foi incluida na referida colectânea sobre as mulheres emigrantes e o trabalho, dirigida pela Profª Doutora Rosa Simas, publicada em português e inglês. As traduções para o inglês, da autoria da Profª Simas, são somplesmente esplêndidas - confesso que a versão do meu texto que prefiro é a traduzida por ela!
    O livro foi lançado na Universidade dos Açores, naturalmente, pois aí a Profª tem a sua cátedra, e daí são muitos dos colaboradores.
    Não foi um lançamento igual aos outros: foi um colóquio, que contou com a maioria dos participantes na iniciativa, como oradores, tendo, assim, a oportunidade de apresentar, de viva voz, as suas teses e de as debater com a audiência - e uns com os outros.
    Parece-me um esquema perfeito para divulgaçâo dos textos do nosso encontro intercontinental de Espinho, sobre as Mulheres da Diáspora , assim como dos do blogue Mulher Migrante em Congresso!
    Os bons exemplos são para seguir.

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