sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

MARIA CLEMENTINO Narrativa de vida - Só, no meio da multidão

Sou uma mulher portuguesa em diáspora.
Nasci no México, há mais de setenta anos, mãe mexicana e pai chinês. Parti com eles para a Macau, pertença, então, de Portugal , na China. Em minha casa, falávamos português, espanhol (com sotaque mexicano) e chinês. Esta mescla de identidades foram marcantes para mim e minhas irmãs. Todos, em particular o meu pai, lamentávamos não ter nascido nenhum filho, símbolo de riqueza para uma família que deveria perdurar.
Casei com um Português e adquiri nacionalidade portuguesa. Mais tarde, com duas filhas pequenas, regressámos a Portugal e aqui ficámos, por uns tempos, para logo partirmos, de novo, para Macau. Lá estava o meu mundo e lá tinha os meus amigos e familiares. Depois, o regresso foi definitivo. Macau ficou bem longe. Sobraram apenas as memórias saudosas, restavam as cartas e as fotos que se trocavam. Sofri como filha, irmã mas, na nova família, tinha um novo papel a desempenhar: acompanhar o meu marido e cuidar das filhas e da casa. Esta era a minha nova vida que teria definitivamente de aceitar.
Lembro-me de um episódio, ocorrido, na segunda vez, que vim para Portugal e ter deixado definitivamente a minha segunda pátria de acolhimento, a China. Eu e as minhas filhas, de cinco e seis anos viemos num navio, ficando o meu marido de regressar mais tarde. Eram viagens de muitas semanas, um mês ou mais, caso acontecessem avarias. Lembro-me que sempre fui marcada pelos enjoos terríveis que me faziam nunca mais levantar, logo a seguir à partida do navio. Temendo a impossibilidade de cuidar das minhas filhas, arranjei coragem e, assumi o meu primeiro papel de cidadã, até então desconhecido para mim. Quanto aportamos na Índia, desloquei-me com elas ao Palácio do Governador , fazendo apelo para que me fosse concedida autorização de permanecer na Índia e esperar pelo meu marido, que vinha no navio que estaria a partir de Macau. Não me foi autorizada. A mágoa juntou-se aos enjoos contínuos e devoradores, mais ainda a tristeza de saber que não poderia cumprir o meu papel de mãe. Entretanto, no navio outra senhoras foram solidárias, juntaram-se e colaboraram nesta tarefa . Da cama, apelava para que as minhas filhas participassem nos eventos culturais, dançando o “malhão” ou outras danças vianenses que tão bem sabiam e participassem nas corridas de sacos e outros jogos, tudo organizado pelas mulheres que sentiam necessidade em amenizar o tempo que teimava em não passar.
A minha identidade foi muito marcada pela faceta oriental e daí, ter sempre procurado manter contacto com duas concidadãs que, tal como e, eram imigrantes, num país em que as tradições orientais eram, felizmente, bem aceites. A necessidade de nos ligarmos foi intensa como forma de mantermos memórias e tradições. Na altura, não havia associações e colectividades. Estava só, estávamos sós, n o meio da multidão. Assim, os nossos contactos eram de tal forma restringidos ao pequeno grupo que isso reflectiu-se na forma de vermos os outros ou de eles nos verem a nós. Um certo misticismo envolvia-nos e preservava-nos de certa forma. Penso, depois de tanto tempo passado, que não o deveríamos ter feito porque a abertura a novas formas de estar teria sido mais enriquecedor e certamente que nos ajudaria a compreender o mundo de outra forma. Destaco a forma como eu apreciava a nova cultura, de tal forma, que ávida de assimilar a cultura portuguesa e de a ter presente que decorei a minha casa, constituída por objectos orientais, partilhada com outra sala com a presença da cultura tradicional portuguesa. Lá estavam as grandes telas de Viana com os dançarinos minhotos, os famosos galos de Barcelos, pratos regionais com frases e provérbios típicos , os potes e os palmitos, tudo me encantava! Juntava aos pratos deliciosos tipicamente portugueses os pratos orientais e até os mexicanos.
Entretanto, fiquei sozinha com as filhas ainda pequenas, enquanto o meu marido partiu para um a comissão em África, em plena guerra colonial. Longe da minha família, longe do apoio da dele, vi-me ainda mais só, mas determinada a lutar. Não foi fácil ultrapassar saudades, ausências de quem amamos e receios da guerra que nos atormentava. Tornei-me na matriarca da família. Acabei por liderar e fui depois, ao longo dos tempo, mantendo este traço novo, mas fundamental para estruturar a família. Escrevia e escrevia, aerogramas saudosos ao marido palavras afáveis aos meus pais , tão longe e mandava-lhes dinheiro com receio de que precisassem de alguma coisa. Cuidava das milhas filhas e acompanhava o seu percurso académico, com entusiasmo. Solitariamente, arranjava o ferro de engomar quando este se avariava bem como outros utensílios, concertava as luzes e as tomadas e ainda as torneiras. Comprava, decidia, mobilizava o dinheiro, era uma verdadeira gestora do lar.
As longas, longas tardes de domingo, como as minhas filhas lhe chamavam, começavam com a visita habitual. logo ao começo da tarde, a uma conterrânea macaense. Aí ficávamos à conversa, tomando chá que vinha de tão longe e deixávamos que o tempo passasse e o entardecer vinha para de novo nos isolar.
Depois, os quatro partimos para Angola (confesso que a partida foi sempre mais importante para mim do que a chegada), algo mudou em mim de forma muito significativa e foi lá que me abri mais do que em qualquer lugar, à vida social, partilhando muito do meu tempo que até aí se confinava apenas ao círculo da família ( 4 elementos apenas) embora muito limitada a um círculo muito selectivo, as mulheres dos oficiais do exército. Um pouco antes do 25 de Abril, regressámos definitivamente a Portugal e aqui permaneci até hoje.
Nesta longa caminhada houve acontecimentos que me marcaram como mulher e cidadã.
A mescla de identidades culturais que fui adquirindo certamente que me marcaram como pessoa. Ainda hoje adoro viajar e conhecer novos mundo e pessoas diferentes. Procurei transmitir este legado às minhas filhas que certamente não será muito mas que apela à riqueza interior e a abertura aos outros e ao diferente. Hoje fico orgulhos em saber que há associações, comissões de mulheres que se ajudam e que dão visibilidade ao papel da mulher. O meu papel, tal com o outras mulheres da minha geração, apenas contribuímos para o trabalho silencioso que apenas era reconhecido pela família. Assim, debater estes temas ,publicamente, sobre as mulheres migrantes em vários contextos e, em particular, naqueles onde as mulheres ainda são discriminadas é para mim um orgulho e por isso felicito a organização.
Desejo muito sucesso na luta e apelo à união das mulheres. Elas sabem, nós sabemos mais do que ninguém a importância da solidariedade!

Maria Balbanera Chamtip Clementino
(recolha de informação por Arcelina Santiago)

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