sábado, 1 de novembro de 2014


A singular história da consulesa Angelina de Sousa Mendes em frança

                                                                                                                                                      Ana CostaLopes[1]

Angelina de Sousa Mendes, como todas as pessoas ligadas à carreira diplomática, por profissão ou por pertença familiar, não se enquadra, à partida, na categoria dos emigrantes apesar de viver no estrangeiro como estes. Os diplomatas, constantes andarilhos, estão mais protegidos social e economicamente do que os segundos, mas têm em comum com eles os problemas de adaptação, as saudades do país de origem bem como os reveses políticos, económicos e outros que afectam os países de acolhimento. Todas as diferenças entre estas duas categorias esbatem-se porém, quando, em tempos de tribulação, se torna necessário ir muito para além dos limites que a sociedade e as suas regras impõem para obedecer a imperativos mais altos e absolutos, em favor da humanidade sofredora e perseguida. É o caso de Angelina de Sousa Mendes, mulher do Cônsul Aristides de Sousa Mendes, de todos conhecido. Trataremos aqui, no tempo que nos é concedido, do que ela passou, em França, mais concretamente na cidade de Bordéus. Outros aspectos da sua biografia são deixados para ocasião mais adequada.

Depois de viver em vários países, da África à Europa e América, dos Estados Unidos à Espanha, da Guiana Britânica ao Brasil, da Califórnia à Bélgica, …. Angelina veio para França numa época particularmente conturbada do século XX, quando a subversão dos valores e o desrespeito pela vida e a dignidade humanas pareciam estar prestes a submergir e aniquilar a Europa. Nascida bem no coração das Beiras, em Cabanas de Viriato, teve Angelina de Sousa Mendes uma larga experiência de vida em países tão diferentes e de culturas tão diversas, acompanhando o marido, rodeada por uma prole que se ia acrescentando regularmente com os anos, num total de 14 filhos. Mas é, em Bordéus, último posto consular de Aristides de Sousa Mendes, que o casal desenvolveu uma das mais problemáticas e arriscadas missões. Ali, a vida de ambos deixou de ser pautada pelas tarefas burocráticas, como nas nações por onde tinham passado, para assumir dimensões de heroicidade, prenúncio de uma componente trágica que, em breve, se lhes colaria à existência. É sobre a sua acção nesta cidade onde chegam em 1938 que nos deteremos nesta comunicação.

A incerta paz e a perseguição dos judeus


Poucas seriam as pessoas que, à data em que a nossa história começa, tanto em França como noutros países, acreditariam que viesse a estalar a guerra. Poucos teriam noção exacta do poder e da loucura de Hitler. Muitos dormiam sonhando com a paz e não previam, por certo, o que esperava à Europa e ao mundo. O Cônsul também não. Ainda em Lovaina, em carta dirigida ao filho Geraldo, Angelina refere este assunto: «Fala-se em que virá a guerra. Deus queira que não. Só queria saber para nos pormos daqui para fora. O Papá não acredita, diz que não pode ser.»[2] Mas parece que Angelina teve o pressentimento de que a guerra se aproximava, como é referido por José-Alain Fralon.[3] E mesmo antes da cidade de Bordéus se encher de milhares de estranhos, ela adivinhou que o perigo estava a chegar, de forma que levou os filhos antecipadamente para Portugal, pondo-os a salvo do terror iminente.

A escritora Júlia Nery, baseada em investigação feita sobre o tema, refere os sentimentos e posições de Angelina através da voz de uma das empregadas da casa. «Durante muito tempo, ainda nós estávamos na Bélgica, ele [Sousa Mendes] não acreditava que Hitler se atrevesse contra países tão poderosos como a França e a Inglaterra. Mas, já em 1936, a senhora escreveu para cá à filha mais velha a falar-lhe do medo que tinha que rebentasse a guerra na Europa. Não me esqueci desta carta, porque as outras criadas pensavam que a Europa era um país».[4]

A Consulesa estava certa. Os países considerados mais poderosos, nos quais se incluía a França, deram, em 1939, conta do fenómeno Hitler. Na Alemanha já tinham ocorrido acções demasiado trágicas relativamente aos judeus e a outros proscritos. Hitler já tinha traçado os seus planos para outras nações e queria concretizá-los. De facto, tudo se precipitou com a invasão da Dinamarca, Noruega, França, Bélgica e Luxemburgo. Os sucessivos bombardeamentos, em alguns destes países, as intempestivas e brutais acções perpetradas não deixavam dúvidas do poder e da impiedade do Reich.

 A situação, em França, agravou-se drasticamente depois do apoio do governo de Pétain ao Reich, entre Maio e Junho de 1940. Isto fez que muitos judeus percebessem o que lhes poderia suceder se não fugissem. O pânico generalizou-se, provocando o êxodo de milhares de refugiados que, chegando a Bordéus, contavam inacreditáveis histórias de horror e de barbárie das tropas dos alemãs.Vinham de diversos lugares fugindo das áreas de combate ou de zonas de risco, procurando uma salvação qualquer. O medo, o terror dominavam. A realidade, aliás, conseguia ser mais terrível do que o imaginável por qualquer mente sã e escorreita. Bordéus passou a ser, então, um dos destinos-chave para a fuga e o consulado de Portugal, um dos poucos países não-beligerantes, uma das únicas esperanças de abandono do palco da barbárie em que a Europa se tinha transformado.

A posição de Angelina e de Aristides face à Circular

Os pedidos de vistos no Consulado português cresceram enormemente. Perplexo, como todos, perante estes novos e trágicos acontecimentos e lidando diariamente com esta multidão amedrontada e desorientada, o Cônsul Aristides Sousa Mendes não ficou indiferente ao problema destas pessoas. Estava, no entanto, condicionado pela Circular 14, enviada por Oliveira Salazar a todos os cônsules e diplomatas. Sousa Mendes questionou-se sobre o sentido das instruções nela contidas e sobre as graves restrições que ela continha. Repugnava-lhe a política de discriminação que ela impunha e teve dúvidas sobre a sua aplicação, por estar longe dos seus princípios humanos, morais e cristãos, e não respeitar os valores consagrados na Constituição que ele prezava.

O Cônsul Sousa Mendes sempre tinha pensado por si próprio: não cumpria só por cumprir, nem fazia só por fazer. Daí aquilo que chamam «doença», e que eu denominaria crise de conflito de valores, por não poder agir em conformidade com a Circular. Ficou efectivamente febril, febril com o peso da decisão e da responsabilidade que a obediência à Circular comportava. O problema era para ele fundamental: o da impossibilidade de pactuar com Hitler e com as instruções do governo português com o objectivo de livrar os Judeus e outros proscritos da tortura e da morte. Por isso, decide desobedecer; e justifica a sua atitude dizendo: «Tenho de salvar estas pessoas, quantas eu puder. Se estou desobedecendo a ordens, prefiro estar com Deus e contra os homens, que com os homens contra Deus». Sabemos que, antes da decisão, a comunicou à mulher, pois dela dependia para a sua concretização. E explica-lha, à maneira bíblica, como vinda de Deus, tal como as revelações proféticas: «Olha, Gigi, eu ouvi uma voz que me disse: levanta-te e vai dar vistos a todos. A todos. Sem nenhuma excepção. E é isso que eu decidi».[5]

O seu filho Sebastião de Sousa Mendes «lembra-se de o pai falar de uma noite de oração e de consulta com a mulher»[6]. Só depois disse aos restantes a sua resolução. Na verdade, um dos sobreviventes, entre tantos, Henry Deutsch, relata num vídeo do Yad Vashem que o Cônsul falou com a mulher a este respeito.[7] E Rui Afonso acrescenta que «quando discutiu o assunto com […] Angelina, ela concordou totalmente que ele devia seguir a sua consciência e passar os vistos».[8] Disse aos que o rodeavam «Eu sei que a Senhora Mendes concorda totalmente com a minha visão sobre isto e também tenho a certeza de que os meus filhos compreenderão e não estarão contra mim», [9] como o reporta o filho Sebastião Sousa Mendes ou Michael d’Avranches.

            Angelina não deu a sua anuência de forma cega pois estava a par do que, em 1940, se passava na Europa bem como em Bordéus. Estava bem informada através das notícias trazidas pelo seu marido, pela filha Isabel e pelo genro, pelo Cônsul-Geral Calheiros Menezes, e por outros amigos de casa, bem como pelo rabino Kruger. Apesar de todo este conhecimento, concordou com a decisão do marido. E concordar, nestas circuntâncias tão difíceis, não era, como não foi, dizer simplesmente que sim. Não se tratava da decisão de ir a uma festa! Era enfrentar um futuro incerto e ameaçador, a nível internacional e nacional. Era enfrentar situações desesperantes e trágicas, umas em Bordéus, outras em Portugal.

            Se lermos a peça de teatro, Aristides, o Cônsul que desobedeceu, da autoria de um dos netos, António de Sousa Mendes, filho de Geraldo, baseado em informações colhidas junto da família, ficamos a saber que a sua avó, por ideais e convicções cristãs, por carácter, mesmo antes de ouvir o marido, já tinha decidido apoiá-lo em tudo. Pensava como ele. Formavam uma dupla, sintonizados plenamente. Quando, nesta peça, Angelina sofre a oposição da filha e do genro à recepção dos refugiados, ela discorda e justifica-se: «Ao abrir as portas a estas pessoas é a Cristo que o fazemos. Ser Católico ou cristão não pode ser só ir à missa e à confissão.»[10] Na conversa entre estas personagens também é clarificador o pedido da filha à mãe quando lhe roga para convencer o pai a não dar os vistos e a pensar primeiramente na família. Angelina diz: «Quanto aos vistos para Portugal, a decisão é o vosso Pai que a deverá tomar, Isabel. Eu espero que…ele diga que SIM[11] A este propósito, Rui Afonso, no seu livro sobre Aristides de Sousa Mendes, também conclui que «Seria errado minimizar o papel desempenhado pela mulher de Sousa Mendes, Angelina, na sua decisão. A bondade e a generosidade dela eram tão evidentes para todos aqueles que a conheciam como as boas qualidades do marido.»[12] O certo é que tomaram a pior das decisões para eles e seus familiares, embora fosse a melhor para os refugiados. Ambos sabiam muito bem disso e dos problemas que iriam ter com Salazar e com os seus inimigos. Mas, provavelmente, não na dimensão exacta.

É evidente que o sucesso das missões diplomáticas estava dependente do casal e não apenas de um deles e, em tempo de ocupação ou guerra, isto ainda era mais patente. Por isso, perguntamos: Teria sido possível ao Cônsul enfrentar e vencer tantos contratempos, caso tivesse ficado sozinho, sem o incondicional apoio da mulher? Teria superado a crise? Teria concretizado o que fez? A este propósito vejamos um pouco o carácter da esposa.


A importância do carácter da Consulesa


 Esperar-se-ia de uma qualquer consulesa uma intervenção humanitária, principalmente nos modos em que foi feita? De uma mulher vulgar, por certo que não. Do ser humano que ela era e sempre foi, de certeza que sim. A Consulesa, pelo estatuto e posição, pelos pergaminhos familiares e educação recebida, não era uma pessoa qualquer. Nunca o foi. Não parece ter ficado ofuscada pela faceta social e de glamour ligados à sua posição e com os quais muitas mulheres se deslumbram. O estatuto de Consulesa não a impediu de actuar de modo corajoso, no momento da ocupação a favor dos desprotegidos, dos aflitos. Dela se diz que não gostava muito da actividade consular, das festas, dos banquetes, e de outras coisas semelhantes, apesar dos elogios oficiais que recebeu pela forma como recebia as pessoas na Bélgica.

Da sua intervenção, em Bordéus, se conclui que ela tinha critérios bem definidos para discernir o que valia a pena fazer, onde e quando. E isto é tanto mais de admirar quanto possivelmente não havia consulesa ou embaixatriz com tantas responsabi­lidades familiares como Angelina, dada a sua abundantíssima prole, o que normalmente a deveria ter levado a ficar de fora dos tumultos e confusões da ocupação. De qualquer forma, não deixou o marido nem regressou a Portugal, onde tinha 10 dos seus filhos. Na verdade, preferiu enfrentar a situação difícil e perigosa em que o marido se colocara. Era preciso ser-se especial para lá ficar e isso ela demonstrou-o muito bem ao aceitar riscos, desafios e provações.

Angelina mostrou ser altruísta, generosa e bondosa, em França. Mas estes atributos não eram algo de isolado, de independente, de sui generis, que tivessem surgido de repente, do nada. Não, eles tinham raízes profundas na alma de Angelina. Em França, eles atingiram o clímax como corolário de uma vida a todos os títulos exemplar na esfera privada. Pode-se, por isso, dizer que os actos da Consulesa durante a ocupação, em França, e nos anos seguintes, em Portugal, se inscreviam no vasto currículo da sua vida, liderada por ideais cristãos, em parceria com seu marido. Ambos fizeram um percurso cristão em que o exercício da bondade, da generosidade se inseria «na vulgaridade» do quotidiano. Nas terras do Passal, junto de Cabanas do Viriato, ela tinha a fama de santa, conforme pude comprovar junto de pessoas por mim entrevistadas naquelas localidades. Há mesmo registos referentes a esta questão, que me dispenso de desenvolver aqui por os reservar para outro lugar.   

A tudo isto se refere o seu neto, António de Sousa Mendes, na peça de teatro já referida, quando põe a Avó a conversar com o Dr. Fralon, num momento crucial da vida do casal, o da decisão de conceder os vistos: «estive sempre firme através de todas as provações da nossa vida… quando dei à luz 14 filhos, sempre senti o apoio dos anjos, o apoio de Deus…demos praticamente a volta ao mundo por mar… nem sempre foi fácil».[13] Fácil também não foi a morte de dois filhos, em Lovaina, como também não o foi a separação de outros dois, como refere em carta dirigida ao seu filho Geraldo[14], ou, mais tarde, em França, aquando do afastamento da maioria deles. Da mãe e esposa se tecem elogios. As cartas consultadas e os relatos da família o comprovam.

 Tudo o que se disse até agora leva a crer que tenha desenvolvido, ao longo de anos, uma endurance que, provavelmente contribuiu para que Angelina não sucumbisse à «doença» do marido ajudando-o física, psicológica e espiritualmente e solidarizando-se com ele para que, posteriormente, aguentasse firme, em Bordéus, e desempenhasse exemplarmente os diversos papéis que assumira durante a ocupação. Essa força e outros permanentes atributos são colocados na voz do seu filho, Pedro Nuno, um dos que assistiu a tudo, durante este período, em França: «Orgulho-me de si Mamã: sempre corajosa no seu posto.»[15] Mas já anteriormente, em 1921, Aristides reconhece muitos outros predicados em carta a sua mulher «Tenho a certeza absoluta da tua dedicação e hoje mais do que nunca eu compreendo o que isso vale. Em todas as situações difíceis na minha vida eu te tenho visto ao meu lado».[16] Portanto, Angelina, estimada e adorada pela família, estava habituada a enfrentar tudo com ele.

Em síntese, a França, sem ela sequer pensar, dar-lhe-ia a oportunidade de mostrar publicamente o que sempre foi no segredo do lar, agora de maneira radical e heróica.

A fuga dos judeus para Bordéus


Se Angelina nos pudesse agora contar o que viveu e fez naqueles cruéis tempos não sairíamos daqui hoje. O casal Sousa Mendes soube bem estar à altura da tragédia que se abateu sobre esta cidade, sobre os judeus, entre outros proscritos. Angelina, tal como o marido, sentiu bem o perigo por que esta gente passava e sabia o que lhes tinha acontecido: a perda da identidade e dos mais elementares direitos cívicos, políticos, económicos, sociais e culturais, a incerteza do momento seguinte, a instabilidade, o medo da tortura e da morte.

As empregadas que se deslocaram a Bordéus, por pouco tempo, uma ou duas vezes, narraram que, depois de terem regressado definitivamente a Portugal, testemunharam aos familiares, por diversas vezes, os terríveis momentos vividos. Uma delas, Ester ou Estela Fernandes, também trabalhou como voluntária na Cruz Vermelha, a pedido do Cônsul, e desta experiência ainda mais horrorizada ficou, segundo o testemunho de António Bernardes, seu filho, por mim entrevistado.[17]

Pedro Nuno filho do casal Sousa Mendes recorda, numa entrevista de 2005, o ambiente que se vivia em Bordéus: «Era uma fatalidade, uma tragédia. Grávidas, velhos, crianças, homens, mulheres, que estavam em doloroso estado de desespero. Numa aflição agonizante. Num sofrimento brutal. Bordéus estava inundado de refugiados. Estas pessoas só queriam viver. Viver. Tenho a certeza que não haverá diferença entre o que vi e o inferno.»[18]

Todos estes aflitos, perseguidos, humilhados e ofendidos contaram com o casal Sousa Mendes. Foram eles um foco de esperança, um porto de abrigo, para aqueles que iam sabendo das suas iniciativas espontâneas. Muitos se acotelevaram na grande Praça de Quinconces, outros dirigiram-se para o Consulado Português e para a residência do Casal, mesmo ao lado, qual farol, luz forte e salvadora, sabendo dos feitos aí praticados. Foi assim que a fama da hospitalidade em casa dos Sousa Mendes cresceu desmesuradamente, sobretudo pela acção de Angelina. A ela cabia, como era costume na época e na classe social a que pertencia, a função hospitaleira de fazer as honras de anfitriã. Nem Aristides teria tido tempo ou cabeça para se preocupar com isso, tal era a afluência de pessoas que lá acorriam para outros fins.

Sabe-se que ela acolheu indiscriminadamente quem chegava. Sem qualquer contrapartida, socorreu a todos indefectivelmente e sem reservas. Sempre que havia vagas na sua casa, distribuía as pessoas pelas camas dos filhos, pelo chão, pelos sofás, pelas escadas onde coubessem. Para ali entravam quantos cabiam. Michel d’Avranches, ou seja, Sebastião de Sousa Mendes relata isso no seu livro: «A Senhora Mendes que agora não tinha apoio doméstico, decidiu que cozinhava e alimentaria tantos refugiados quanto necessário. Ela assistiu os mais necessitados, os idosos e doentes, na sua casa, cosia as suas roupas sempre que necessário e até lhes fazia as camas e lavava a roupa deles. Um verdadeiro acto de abnegação. […] Era uma grande mulher».[19] Na rua dava qualquer coisa para beber ou comer a quem lhe pedia, distribuía roupa, cobertores. Fazia o que podia para dar conforto e esperança. De resto, também, em Portugal, recebeu refugiados, e muitos, alguns dos quais partiram de Bordéus antes dela, pondo a sua casa de Cabanas à disposição e pedindo aos familiares que fizessem o mesmo, como de facto, aconteceu.

Angelina também passou vistos para ajudar o marido. Isto foi confirmado por várias pessoas por mim entrevistadas como António Bernardes, filho de uma das empregadas que esteve em Bordéus, Ester, e sua irmã, Deolinda Odete Fernandes Bernardes[20], bem como Maria Luísa Andrade Caetano e Gracinda Aguiar, da família Sousa Mendes, a qual refere que, «quando foram para Bordéus, ela era o braço direito dele», pois «o ajudou muito com os passaportes e com os vistos».[21] Há ainda o testemunho de dois sobreviventes, Moise Elias e de sua mulher ao Yad Vashem, em 1966, reproduzido no site da Sousa Mendes Foundation, iguais aos de muitos outros que citam os vistos de que beneficiaram gratuitamente. Nele mencionam centenas de outras pessoas que foram igualmente contempladas. Moise Elias e a mulher referem o seguinte: «Durante um período de semanas, nós vimos com os nossos próprios olhos como o Dr. Mendes, com a ajuda da sua mulher, carimbava os vistos nos passaportes a toda a gente que lá se apresentava — sempre gratuitamente. O Dr. Mendes continuou até que o governo português lhe retirou o cargo e fechou o Consulado de Bordéus.»[22] O testemunho é de 1966, tinha ele, então, 44 anos de idade.

Para além deste casal, muitos outros foram albergados em casa dos Sousa Mendes como Charles Oulmont, professor da Sorbonne. Cito-o pelo insólito da situação. Foi um dos que, depois da sua residência, em Paris, ter sido invadida pelos alemães, procurou a casa da Consulesa, em Bordéus, e lá se instalou. Era um refugiado peculiar pelo que tinha escrito contra Hitler. A seu pedido, Sousa Mendes preservou muitos dos seus documentos e manuscritos[23] que, naqueles tempos da ocupação, o poderiam ter posto em risco.

Podemos tirar algumas conclusões sumárias da estadia e actuação de Angelina de Sousa Mendes em França. Penso que este país se pode orgulhar de a ter tido no seu território naquela época. Os judeus e todos aqueles cuja liberdade dependeu da actuação dos Sousa Mendes devem-lhes eterna gratidão, designadamente à esposa do casal cuja intervenção não podia ter sido nem mais activa e desinteressada, nem mais completa ou variada. Do espaço privado ao público ela actuou sem restrições, ultrapassando todas as dificuldades que as limitadíssimas condições lhe impunham, devassando a sua própria casa e prescindindo da intimidade do seu lar. Para ela não havia distinção de pessoas. Nenhum impedimento a coibia de acolher quem precisasse do seu auxílio, acudindo a todos os que lá aportavam, no mais puro altruísmo e, porque não dizê-lo, por solidariedade cristã, mesmo quando qualquer outro apoio fazia falta. O papel central da Consulesa em todo projecto de bem-fazer é posto em evidência por muitos que estudaram a acção do Cônsul português de Bordéus, entre os quais Rui Afonso[24] quando cita, por exemplo, o já referido livro de Michael Avranches. Podemos, pois, inserir Angelina no grupo de mulheres que, na retaguarda, sem protagonismos contribuiu para minorar as dores e perigos dos perseguidos. De muitas destas mulheres foram divulgadas as suas acções heróicas. Mas pouco se diz dos empreendimentos abnegados de Angelina, uma portuguesa que os poderes de então condenaram ao esquecimento e ao vitupério público e a nova consciência política do Portugal de Abril não ousou pôr em evidência, talvez, porque os protagonistas não eram defensores de uma ideologia qualquer na moda.

Seja como for, a grandeza destes actos coloca o casal Sousa Mendes nos Justos entre as Nações, de que fala o Yad Vashem quando diz: «Num mundo de total colapso moral, existia uma pequena minoria que teve uma coragem extraordinária para defender os valores humanos. Estes foram os Justos entre as Nações. Destacam-se em contraste para o mainstream da indiferença e hostilidade que prevaleceu durante o Holocausto. Ao contrário da tendência geral, estes salvadores olharam os judeus como seres humanos que viveram dentro dos limites do seu universo de obrigação.»[25] Os Sousa Mendes destacaram-se nesse mar de indiferença, hostilidade e compromisso politicamente correcto, pelas suas atitudes de grande solidariedade.

Angelina nunca poderia ser incluída no grupo dos indiferentes já que, como disse, teve fama de santa entre as pessoas que a conheceram ou que para ela trabalharam, em Cabanas de Viriato, como consta das entrevistas por mim feitas e que divulgarei em tempo oportuno. Todos eles e elas são unânimes em dizer que os seus actos eram ditados por um imperativo de bondade e de santidade. Assim, as suas atitudes para com os refugiados que chegavam à sua casa ou ao Consulado português de Bordéus, não foram actos esporádicos, isolados e sem consequência, mas sim expressão de algo muito maior que lhe enformava a existência e que teve, em França, a ocasião de se manifestar em toda a sua plenitude.

Dado este quadro genérico de actuação de uma pessoa tão superiormente dotada de atitudes e comportamentos heróicos, perguntamo-nos por que ainda não se prestou atenção à actividade da Consulesa e honrou devidamente a sua memória? Será que o mainstream da intelectualidade lusitana obriga a esquecer as acções das pessoas boas, mesmo quando elas afrontam poderes ditatoriais? Será que a acção heróica das mulheres terá sempre de ser secundarizada em relação àquilo que os seus maridos realizam e encabeçam?

Chegou a hora de Angelina de Sousa Mendes sair da invisibilidade por causas tão dignas como aquelas de que se falou hoje. Ela deixou aqui, em França, uma marca indelével, um caminho, um extraordinário exemplo do que a humanidade deverá fazer para se cumprir. A tolerância ‒ religiosa, étnica, política, cultural ‒ , que lhe enformou a vida, o combate que fez à discriminação e o respeito que mostrou pelo ser humano, a todos comoverá. Chegou a hora de a homenagear e é isso que estamos, hoje e agora, a fazer quando falamos dos seus extraordinários actos. Mas a sua heroicidade merece muito mais.




[1] FCH, CECC e CEPCEP, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.
[2] Carta de Angelina de Sousa Mendes a seu filho Geraldo, de Lovaina, a 28 de Novembro. [1937]
[3] Cf. José-Alain Fralon, Aristides de Sousa Mendes, Um herói português, Lisboa, Ed. Presença, 2012, 4.ª ed., p. 39.
[4] Júlia Nery, O Cônsul, Lisboa, D. Quixote, 1991, p. 43.
[5] Entrevista a Pedro Nuno de Sousa Mendes por Marta Vitorino no jornal Magazine Domingo, 23 de janeiro 2005, in http://www.aristidesdesousamendes.com/zpedronuno.htm, 8-4-2014.
[6] Rui Afonso, Um homem bom, p. 104, in http://www.casadapalavra.com.br/_img/pdf/429/1.pdf, 9-4-2014.
[7] Depoimento de Henry Deutsch sobre Aristides de Sousa Mendes e sua mulher, in Foundation – US, Saved by Portuguese Consul Aristides de Sousa Mendes ...; www.youtube.com/watch?v=bwwi9cd5kJw- 9-6-2104.
[8] Rui Afonso, Um homem bom, p. 105, in http://www.casadapalavra.com.br/_img/pdf/429/1.pdf, 9-4-2014.
[9] Michael d’ Avranches, Flight through Hell, How a Portuguese saved thousands of Jews during the World War II, s.l., ed. Michael d’Avranches, 1951, p. 56.
[10] António de Sousa Mendes, Aristides, o Cônsul que desobedeceu, manuscrito entregue pelo autor, p.16.
[11] Id., Ibid., p. 17.
[12] Rui Afonso, Um homem bom, p. 108, in http://www.casadapalavra.com.br/_img/pdf/429/1.pdf, 9-4- 2014.
[13] António de Sousa Mendes, Aristides, o Cônsul que desobedeceu, manuscrito entregue pelo autor, p. 21.
[14] Carta de Angelina de Sousa Mendes a seu filho Geraldo, Lovaina, 28 de Novembro.
[15] António de Sousa Mendes, Aristides, o Cônsul que desobedeceu, manuscrito entregue pelo autor, p. 17.
[16] Carta de Aristides de Sousa Mendes a sua mulher em 25 de Março 1921.
[17] Entrevista a António Bernardes, filho de Estela ou Ester Fernandes em 23-1-2014.
[19] Michael d’ Avranches, Flight through Hell. How a Portuguese saved thousands of Jews during the World War II, s.l., ed. Michael d’Avranches, 1951, p. 58.
[20] Entrevista a António Bernardes, filho de Ester Fernandes, 21-1-2014 e a Deolinda Odete Fernandes Bernardes em 27-6-2014.
[21] Entrevista a Maria Luísa Andrade Seabra Caetano em 4-7-2014; Entrevista a Gracinda Aguiar, nora de Maria do Patrocínio Teles Abranches Aguiar, da família Sousa Mendes, 18 de Fevereiro 2014.
[22] Testemony of Moise Elias, [and his wife] in http://sousamendes foudation.org. 8-2-2014
[23] Charles Oulmont, in http://sousamendes foudation.org/bamdas-frieman/. 8-2-2014
[24] Rui Afonso, op. cit., p. 108.
[25] The Righteous Among the Nations, in http://www. Yadvashem.org/yv/en/righteous/about.asp, 10-6-2014.

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