"Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo"
Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo
Senhora Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Espinho, Dra. Leonor Lêdo
Senhora Directora da Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva, Dra. Andrea
Senhora Profa. Dra. Elisabete Battista
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Apresento os meus agradecimentos à «Associação Mulher Migrante», na pessoa da
Sra. Dra. Manuela Aguiar, por esta iniciativa: “Ao Encontro de Maria Archer,
Portuguesa, Cidadã do Mundo”.
Foi com muito prazer que aceitei vir até Espinho falar, sobre a minha tia-avó, neste
espaço que tanto seria do agrado de Maria Archer.
Aos alunos da Escola Básica e Secundária Domingos Capela os meus parabéns pela
entrevista imaginária a Maria Archer. Foi um momento inesquecível, ouvir hoje,
através de jovens estudantes a voz de Maria Archer, mais de um século, após o seu
nascimento.
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Espinho – Biblioteca Municipal José Marmelo e Silva
"Ao Encontro de Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo"
Ao imaginar como vos deveria apresentar Maria Archer recordei-me de um Inquérito
às Mulheres Portuguesas que o semanário “O Diabo”, dirigido por Ferreira de
Castro, corria o ano de 1935, lançou. (Diabo, O,2 (71), (3/11/1935)
Penso que nada será mais autêntico do que reencontrarmo-nos com Maria Archer
através das suas próprias palavras.
Permitam-me, então, que vos leia os considerandos de Maria Archer sobre
questões, ainda e sempre, tão actuais como “A mulher, o feminismo e o pacifismo –
O papel social do Amor – O trabalho feminino – A maternidade – A época em que a
mulher foi mais feliz”.
“Fala a escritora Maria Archer
Maria Archer, escritora e jornalista, respondendo ao nosso inquérito, começa por nos manifestar as suas
impressões sobre a dificuldade de se dar uma resposta concisa e genérica a determinadas perguntas que é
costume fazer-se em relação à vida espiritual das mulheres.
MA -As aspirações da Mulher são muitas: a maior parte delas, porém, não se confessa.
O Diabo - Há certamente algumas que se impõem...
MA - Sim. Acima de tudo a Mulher deseja o reconhecimento da sua categoria de criatura socialmente
humana. É que, presentemente a mulher é ainda um animal doméstico.
O Diabo - Quanto ao feminismo... Qual a sua maior preocupação?
MA - A de conseguir para a mulher a independência em todos os seus aspectos.
O Diabo - Existe a Nova Mulher?
MA - A 60.o latitude Norte, talvez os homens consintam no aparecimento deste fenómeno.
O Diabo - Que impressões possui sobre o trabalho feminino?
MA - O trabalho é sempre um meio de subsistência. Para a mulher entretanto não chega a ser isso. No
futuro, o trabalho será aquilo que havemos de ver quando o futuro fôr presente.
O Diabo - Sobre o ideal pacifista na mentalidade feminina?
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MA - Presentemente existe. Será sempre assim? É difícil um julgamento... A mulher não é melhor do que os
Ante um sorriso, Maria Archer completa o seu pensamento:
MA - A mulher, tanto como o homem, será pacifista ou não - segundo o seu grau de civilização. É natural
que a mulher hotentote não deixe tão cedo de admirar o fragor das batalhas, talvez de achar-lhe poesia.
O Diabo – Que papel representa o Amor na sociedade actual?
MA – De uma forma geral, não sei responder. Representa variados papéis, conforme os casos.
O Diabo – E no futuro?
MA – Pelo jeito que as coisas levam, desconfio que não chega até lá...
O Diabo – Houve alguma época da existência da humanidade em que a mulher tivesse sido feliz?
MA – Uma: a do matriarcado.
O Diabo – A maternidade influi na vida espiritual da mulher?
MA – Não sou mãe, nem fiz observações a este respeito.
O Diabo – E na vida social?
MA – Se a mulher é mundana – a maternidade é um tropeço. Se é uma mulher que trabalha – igualmente.
Mas, neste último caso, pode ser também um incentivo para o trabalho, porque muitas vezes perdemos o
gosto de viver para nós.
O Diabo – Efeitos do desenvolvimento intelectual da mulher?
MA – De princípio, um mal, porque a mulher, por seu intermédio, perde a faculdade de admirar os homens.
Em relação ao lar, esses efeitos são mínimos: o lar é um campo mais próprio para manifestações afectivas
do que manifestações intelectuais. Perante os filhos a intelectualidade da mãe deve forçosamente
manifestar-se benéfica. Na vida social, depende do carácter dela.”
Estas são, sem dúvida, convicções não muito comuns e, muito menos, expressas
publicamente nos idos anos de 1935.
E como afirmou Maria Teresa Horta, no prefácio à reedição do livro “Ela é apenas
Mulher”: “Tudo o que Maria Archer dizia, era proibido.” (Horta, 2001:XII)
Mas onde nasceu, onde viveu, quem foi Maria Archer?
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Maria Archer, de seu nome Maria Emília Archer Eyrolles Baltazar Moreira, nasceu
em Janeiro de 1899, em Lisboa. Foi a mais velha de uma prole de seis. Um rapaz e 5
A sua vida juvenil passa-a quase toda em África.
As suas Idas e Voltas até ao continente africano iniciam-se no ano da Implantação da
República Portuguesa. Nesse longínquo ano de 1910 partiu com os pais e com 4
irmãos para a ilha de Moçambique, onde viveu, até 1913. Maravilhou-se com a
paisagem que diariamente lhe inundava o imaginário e apelidou-a de “ilha de coral
A nova incursão por terras de África acontece em 1916 acompanhando os pais, o
irmão João, meu avô, e a irmã Isabel. Desta vez rumou até à Guiné, “a verdadeira
África maravilhosa”. Aqui viveu durante dois anos.
Em Agosto de 1921, e já em Faro, casa com Alberto Teixeira Passos, que tinha
conhecido anos antes na ilha de Moçambique. Os primeiros cinco anos de vida do
jovem casal são vividos em Ibo, Moçambique.
O seu matrimónio dura 10 anos e em 1931 encontra-se já, oficialmente, separada do
marido. Nesse ano navega até Angola para viver com os pais e aí permanece até
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Maria Archer foi escritora, jornalista, conferencista, tradutora.
O seu primeiro artigo é publicado no jornal “O Ocidental” em Moçambique, em
É em Angola, em 1935, que é editado o seu primeiro livro. Um livro de novelas e de
contos intitulado, Três Mulheres, em parceria com Pinto Quartim.
Aqui colabora na “Última Hora”, na “Pátria”, no “Comércio de Angola” e em “Angola
Desportiva”.
Após o regresso a Portugal, e ainda no curso do ano de 1935, publica o romance
África Selvagem – a sua estreia na literatura colonial portuguesa.
Sobre o romance África Selvagem escreve Augusto Pinto no «Diário de Notícias»:
“Há muito que não líamos em língua portuguesa livro que tanto nos agradasse”
salientando, entre outros predicados da obra, a «linguagem rica, de uma perfeita
plasticidade e de um colorido brilhante como só grandes escritores sabem utilizar».
O «Diário de Lisboa» considera Maria Archer “a revelação da literatura portuguesa
E Pinto Quartim refere: “Não foi preciso uma convivência demorada para me
certificar de que estava em frente de mais um brilhantíssimo desmentido, não só a
suposição idiota de que a Mulher é um ser sem cérebro, para quem só há duas
condições: dona de casa ou cortezã, como também a essa baboseira tão repetida de
que a Mulher inteligente e culta perde todo o seu modo de ser feminino....E reparei,
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ao mesmo tempo, que a essa mulher, intelectual e artista, não faltava nem a graça
feminil, nem a garridice ou coquetterie própria do seu sexo...E relembrando o seu
vivificante convívio intelectual, mais em mim se fortifica a convicção de que não há
superioridade de um sexo sobre outro, mas apenas a superioridade de algumas
individualidades sobre a massa.” (Ilustração de Angola, 01/1936)
Em Lisboa vive, empenhada e militantemente, do seu trabalho de escrita para
jornais e revistas e dos direitos de autor dos livros que publica que, amiúde, tanta
polémica provocaram pela incomodidade causada ao pensamento dominante.
Mulher autodidacta, apenas estudou oficialmente até à 4.aclasse, mas é dona de
uma cultura exuberante.
Mulher de acção pela palavra, pela escrita.
Escreveu sobre os seus ideais, sobre África, sobre a luta pela dignificação da mulher.
Como recompensa, sofreu o isolamento e a discriminação da sociedade da época.
Tal como afirmou em Revisão e Conceitos Antiquados em 1952:“A minha obra literária
tem sido norteada pelo princípio vital de rebater o conceito arcaico da inferioridade mental da
João Gaspar Simões tece-lhe os maiores elogios: “Prosadora vigorosa, as suas
histórias moldadas à maneira de Maupassant, num estilo mais másculo que
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feminino abordam problemas ousados nas relações da mulher com o homem e nas
da situação daquela numa sociedade pouco afeita ainda a reconhecer direitos iguais
aos dois sexos.”
Em 1990, Leopoldo Amado na comunicação A Literatura Colonial Guineense afirma
que “ as condições nas duas primeiras décadas do século XX não eram propícias ao florescimento
literário, pelo que se exceptuarmos a actividade jornalística que esporadicamente publicava
alguns poemas saudosista-coloniais, que saibamos, não foi publicada outra obra literária-colonial
que não a de Maria Archer e Fernanda de Castro. Maria Archer apresenta-se-nos como a primeira
literata-colonial.” (Amado, 1990:73-93)
Na Guiné, Maria Archer é reconhecida como a “poeta do exotismo”. A leitura das
suas obras convida ao fascínio da descoberta, Os seus livros sobre África são pontes
para a reflexão mágica, para a beleza. A densidade da escrita enleia-nos tal floresta
A sua escrita é o lugar dos contrários, é a conjugação da água e do fogo, a simbiose
da terra e do mar.
Hoje, aqui, em Espinho, vimos ao encontro de Maria Archer, trinta anos após a sua
morte. Nunca é tarde.
Mulher viajada, primeiro por África, depois pela Europa. Várias foram as travessias
dos oceanos que empreendeu. Destaquemos dois momentos. Um, em que,
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perseguindo o sonho da liberdade de pensamento e de escrita, navegou até ao
Brasil onde viveu 24 anos; outro, quando cruzando, de novo, o oceano regressa ao
País que a viu nascer e que nunca esqueceu, em 26 de Abril de 1979, concretizando
o seu desejo de morrer em Portugal, conforme artigo publicado no jornal “A Luta”
de Abril de 1977 com o título “Maria Archer quer morrer em Portugal”tendo por
base uma carta do capitão Sarmento Pimentel publicada no “Primeiro de Janeiro”.
A sua escrita foi indelevelmente influenciada pelos muitos anos vividos em África.
África, esse continente de cores quentes, de paisagens primitivas, de terras de sol.
Fascinou-se com a natureza que a rodeou e pintou-a através da escrita.
Oiçamos como ela sentiu os países africanos:
Em Cabo Verde admirou a fala: “A sua fala, o crioulo, é doce, é amável. Fizeram-na
com antigas palavras portuguesas e os dialectos da Guiné. Para mim essa fala
aparecia como feitiço saído daquelas bocas de lábios grossos e dentes cintilantes. E
adverte: “Se os azares do destino os levarem a Cabo Verde, não temam as ilhas
crioulas. A vida é doce nessas montanhas orladas de mar.” (Archer, 1955:37,42)
Na Guiné, que a encantou desde o primeiro olhar, diz-nos: “Ficou-me do que vi e do
que ouvi, uma impressão de maravilha. Sim, dizia eu comigo, é esta a verdadeira
África misteriosa... Causava-me assombro ouvir falar da sua selva cortada de rios e
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braços de mar. Ilhas na frente, rios e canais nas profundidades do sertão, dão à
província o aspecto de uma terra estranha onde se viaja sempre, na água....Região
exuberante e selvagem; lembro-a com mais intensidade que certos países pletóricos
de civilização onde demorei meus passos de viajante”. (Ibid:45,51)
Para São Tomé e Príncipe as suas palavras são” Duas linhas na linha equatorial.
Duas maravilhas. Vistas do navio, as ilhas parecem-me aguarelas japonesas. ...Como
são belas as roças de cacau, cuidadas, cheias de aromas, de flores.... São Tomé, ilha
vulcânica de segredos inconfessados, deixa borbulhar, nos seus flancos, várias
nascentes de águas minerais”. (Ibid:91,94)
Sobre Angola confessa-nos: ”Angola é rica de rios e florestas. Vi várias quedas de
água de beleza deslumbradora...Florestas, cerradas e extensas florestas. Vocês não
calculam a impressão que nos faz, a nós europeus, o mistério da floresta africana! A
do Malombé, luxuriante, fantástica, com fama de habitat de gorilas, é das
maravilhas da criação.” (Ibid:218)
De Moçambique canta Maria Archer: ”Moçambique tem rios e serranias, mas não é
pródiga em águas ou serras. Todavia, lá para as brenhas do interior, os picos Namuli
rasgam as nuvens. O Zambeze procura o mar perto das cidades com o seu dorso
turvo da passagem de mil cachoeiras.” (Ibid:231)
E foi assim que no seu livro Herança Lusíada Maria Archer nos pintou a sua África.
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Mas também a Oceania Maria Archer nos desvenda descrevendo Timor como a ”
ilha de picos imensos...... O seu aspecto é deslumbrante. É mosaico de colorido
forte, onde se destacam os picos coroados de nuvens, as encostas floridas, as fitas
azuis dos rios, as cintilações das cachoeiras, o verde das matas, o negrume dos vales,
o casario alegre, e, aqui e além, os leques doidejantes das palmeiras.” (Ibid:328)
Viveu a revolta de ver alguns dos seus livros apreendidos. E, inconformada e
perseguida, ruma até ao Brasil.
Aí, colaborou nos Jornais O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal
Democrático. Neste último, colaboravam diversos intelectuais portugueses
promovendo acérrimas discussões em torno das questões políticas, de crítica ao
regime vivido em Portugal, na altura.
Também no Brasil dá à estampa quatro livros: Terras onde se fala Português (1957),
Os últimos Dias do Fascismo Português (1959), África sem Luz (1962) e Brasil,
Fronteira da África (1963).
Em 1973, o então Primeiro - Ministro de Portugal, Professor Doutor Marcello
Caetano, autorizou o seu regresso a Portugal, cinco dias apenas após ter conhecido
o pedido, com o seguinte despacho: “... Sra. D Maria Archer pode vir para Portugal
quando quiser. Não será incomodada.” (Caetano, 23/06/1973)
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Regressa, finalmente, em 1979, doente, seis anos após ter obtido a anelada
permissão e com um novo regime político. No regresso, vinte e quatro anos volvidos
desde o dia em que deixou Portugal, dificilmente reconhece as irmãs e os sobrinhos.
No entanto, esta mulher de horizontes, viajada e ousada, admirada por muitos e
silenciada por alguns mantém, até ao fim, inalterada, apesar das agruras da vida,
uma das suas características: a vaidade feminina.
Deixa-nos em 23 de Janeiro de 1982.
Raul Rego, no artigo “Maria Archer” (Rego, 02/02/1982), escrito dias após sua morte,
sublinha: “Ela era uma mulher livre, escritora de garra, senhora de si e impondo-se
pelo talento”, o que na altura, não agradava a muitos, a ponto da sua obra Ida e
volta de uma caixa de cigarros (1938) ser apreendida.
Passados mais de 100 anos o que ficou, então? Ficaram os valores e os princípios.
Ficaram os fins e os propósitos. Ficou o espírito de pioneirismo.
À «Associação Mulher Migrante», à Câmara Municipal de Espinho, aos estudantes
da Escola Básica e Secundária Domingos Capela, muito obrigada.
Bem hajam por este Encontro com Maria Archer, Portuguesa, Cidadã do Mundo.
Espinho, 9 de Março de 2012
Olga Archer Moreira
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Referências bibliográficas:
AMADO, Leopoldo. A Literatura Colonial Guineense. Soranda: Revista de Estudos
Guineenses. n.o 9 (1/1990), pp. 73- 93
ARCHER, Maria (1935). Fala a escritora Maria Archer. Diabo, O, 2 (71) (3/11/1935)
ARCHER, Maria (1952). Revisão de Conceitos Antiquados. Ler,7. (10/1952), p.5
ARCHER, Maria [1955]. Herança Lusíada. Lisboa: Edições Sousa e Costa
CAETANO, Marcello [carta dirigida ao Prof. Fernando Pádua], (23/06/1973)
Diário de Lisboa, (1935)
HORTA, Maria Teresa (2001). Prefácio. In Archer, Maria. Ela é Apenas Mulher, reed.
Lisboa: Parceria A.M. Pereira, p.XII
Maria Archer quer morrer em Portugal. Luta, a, (27/04/1977), p.20
PINTO, Augusto. Diário de Notícias
QUARTIM, Pinto. Ilustração de Angola, (01/1936)
REGO, Raul. Maria Archer nos últimos tempos de vida. Diário Popular, (2/2/1982).
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