terça-feira, 24 de setembro de 2013

Filomena Fonseca Comunicação


A EMIGRANTE QUE NÃO FUI

          Após um honroso convite para escrever algo relacionado com a realidade da mulher na vida, na diáspora e nas artes, tentei conjugar as várias vertentes, contribuindo através do testemunho da minha própria experiência. Não porque eu tenha sido verdadeira emigrante, mas porque sempre o quis ser e me senti impedida por diversas vezes.

          Enquanto, ainda hoje, muita gente tem grande relutância em emigrar e vê a coisa sempre pela necessidade e pela negativa eu, pelo contrário, sempre tive vontade de alargar os meus horizontes e conhecer novas terras, outros povos e outras culturas. Como disse um dia D. Manuel Clemente, nós descendemos em grande parte de povos que por aqui passaram e se instalaram. Não admira pois, que muitos tenham vontade de sair e se aventurem. Está-lhes no sangue. Se assim não fosse, não teria havido os descobrimentos. Talvez também daí, a grande capacidade dos portugueses em se integrarem facilmente nos países de acolhimento.

          Para mim, a palavra emigração significa aventura, com todos os predicados subjacentes. Mas nunca foi e nunca será sinónimo de facilitismos ou liberdade sem regras. Muito menos para as mulheres sonhadoras e atentas à realidade. Como dizia Maria Lamas: “ Tudo vem do sonho. Mas só os sonhos em ação têm força criadora”. Será, assim, sinónimo de dinamismo, trabalho, ambição, vontade, evolução, etc.

          Sempre tive muita curiosidade e grande fascínio pelas pessoas e por tudo o que aparecia de novo. Criava os meus próprios brinquedos, a partir do que via nas festas da aldeia. Tudo servia para dar azo à minha imaginação. Desde muito cedo manifestei um dom para o desenho. Passava o tempo a desenhar e a ler. Aprendi também trabalhos manuais, como: crochet, costura, tricot, bordados, etc.

          Na época, a maioria das mães, não tinha voz ativa dentro das suas próprias famílias. Eram impedidas de tomar iniciativas e vistas sobretudo como objetos de trabalho doméstico. Incluo aí também a minha mãe, subjugada às ideias do marido. Só subtilmente e à socapa, resolvia situações de acordo com suas ideias próprias. Tinha o seu emprego e também em casa, sempre a vi a trabalhar. Quantas vezes, atarefada e a precisar da minha ajuda, desde que me visse com livros, dizia: “Deixa-te estar!” Como ela me compreendia! Talvez estivesse me projetando os seus próprios sonhos. Bem diferente de meu pai. Muitos chefes de família eram dominadores, junto de suas mulheres e filhas. Não as valorizavam.

          Era eu adolescente e havia na minha terra um grupo de teatro amador. Assistia a todos os espetáculos. Um dia convidaram-me a entrar numa peça. Ensaiei três vezes sem meu pai saber. Logo que soube, disse: “ Mulheres no teatro, nem pensar!” E lá se foi a possibilidade da minha 1ª experiência teatral. (Só muito mais tarde, consegui realizar esse desejo, através de cursos de teatro e experiências em novela da SIC.)

          Vivendo numa casa grande entre muros de granito, pululavam em mim muitos sonhos. Porque não me conformava com a supremacia das ideias maioritariamente masculinas, discriminatórias da minha condição social, tive muitas vezes de remar contra a maré, desobedecendo por vezes a meu pai, que nem queria que eu estudasse. Na época, poucas mulheres estudavam e só a insistência duma professora o conseguiu convencer. Mas sem hipótese de qualquer reprovação. Seria condição suficiente para não voltar à escola. Isso fez-me criar a noção da responsabilidade pelos meus atos, e aliada à minha grande sede de saber, ainda hoje latente, resultou em grande empenhamento e luta pelos meus objetivos.

           Aos 12 anos de idade vi, com alegria, o meu primeiro poema publicado num jornal escolar. Mas fui sempre muito contrariada em meus anseios. Quis ser professora e não me deixaram. Obrigada a trabalhar aos 15 anos, após o Curso Comercial, aproveitei o primeiro emprego que apareceu, num escritório de empresa do ramo alimentar. Aos 17 anos chefiava o escritório duma fábrica de malhas e confeções com 65 pessoas. Entretanto, um namorado quis casar comigo e acharam que era cedo demais. Como iria viver para Sintra, era muito longe…!

          Tirei a carta de condução (coisa rara para mulher), tinha 19 anos. Nessa altura uma amiga que, como eu, adorava os idiomas de francês e inglês, propôs-me ir trabalhar e estudar na Inglaterra. Arranjou em Londres emprego para as duas e sonhei ir com ela. Na hora de tirar o passaporte, meu pai voltou a dizer “não!” e ela foi-se embora sozinha. É hoje uma mulher bem-sucedida da diáspora. Visito-a em Hamburgo, no norte da Alemanha.

          Pouco tempo depois, uma vizinha quis levar-me para os Estados Unidos e voltei a ouvir uma nega. Essa amiga, é também uma empresária de sucesso em Nova Iorque.

          Movida pela força de vontade de evolução contínua, e não podendo largar o emprego, quis retomar os estudos em horário noturno, e ouvi então dizer: “Aqui, mulher não sai à noite!”. Sempre “aprisionada”, só quando passei à maioridade (21anos) me senti eu própria, tornando-me independente e financeiramente autónoma. Fui-me aventurando à vida, sem nada esperar de quem quer que fosse.

          Aos 23 anos realizei o sonho de viver na minha própria casa, adquirida com algumas economias, proventos das minhas habilidades e um pequeno empréstimo bancário.  

          Aos 26 anos ingressei nos quadros do Banco Português do Atlântico, hoje Millennium Bcp. Vivi sempre do meu ordenado, sem imaginar que pudesse um dia existir qualquer ajuda do Estado se eu não trabalhasse. Por isso, ia aprendendo tudo o que estivesse ao meu alcance para me valorizar. Um dia, vi afixado na minha agência bancária, o anúncio de um concurso para promotores comerciais. Até aí, só havia promotores/homens. Concorri, escrevendo uma carta para o efeito. Estando esta já terminada, reli-a e pensei: ” Sou mulher. Às tantas a carta vai parar ao lixo. Vou já alertar para isso!”. Então acrescentei no final da carta: “Pelo facto de ser mulher, julgo não ser condição suficiente para me excluírem do concurso. Entendo que o trabalho, desde que bem executado, poderá ser feito por ambos os sexos”. Venci, assim, o desafio, tornando-me a 1ª Mulher Promotora Comercial bancária da zona norte do país. Também por isso, fui convidada a promover a venda dos primeiros seguros na banca portuguesa, em parceria com uma companhia de seguros. Estávamos em 1989. Foram ótimas experiências de trabalho, que me deram muito prazer e me levaram a receber variados prémios. Sempre atendi emigrantes e dentro do serviço de emigração, li muitas das suas cartas, traduzindo os seus anseios e satisfazendo os seus pedidos.

          Quando sonhei ter o meu primeiro automóvel, fui em par-time, demonstradora e vendedora de trens de cozinha da marca italiana IMCO. Após treze meses, chegou o carro novo que paguei a pronto.

 

          Mas as minhas tendências mais inatas, eram para as artes. Queria dedicar-me à pintura e o tempo escasseava, meu sonho esvanecia.

          Em 1980, a convite de uma amiga emigrante, fiz a minha primeira viagem a Paris, de comboio, por quinze dias. Aí, o sonho renasceu com toda a pujança, já que, à minha volta se respirava a arte. Era ali mesmo que queria ficar! Aproveitei uma semana para visitar os museus. A outra, para comprar material e comecei aí a pintar. Ainda frescos e com todo o cuidado, trouxe três telas pintadas a óleo. Mal cheguei a Portugal, como havia várias agências do Banco em França, logo tratei de saber como poderia ir trabalhar e viver em Paris. Mais uma vez, e para meu desconsolo, outra resposta negativa. Em Lisboa disseram-me que o meu pedido teria sido aceite se o tivesse feito no ano anterior, dado a emigração, entretanto, ter diminuído bastante.    

          Restaram-me os sonhos e a minha arte. Após mais uns quantos quadros pintados, mostrei-os a uma jornalista e crítica de arte do Porto, Anabel Paúl, que me incentivou a apresentá-los ao público, o que veio a acontecer em 1983 em exposição coletiva no Sindicato dos Bancários do Norte. Em 1987 realizei a minha primeira exposição individual na Póvoa de Varzim. Através de livros, alguns mestres, aulas na ESBAP e experimentando diversas técnicas, continuei na arte. Tinha 36 anos quando faleceu minha mãe e meu pai logo a seguir.

          Nos finais do século passado, por motivos de saúde, aposentei-me do trabalho no Banco. Em 2005 interessei-me pela escrita criativa, num curso com o escritor Válter Hugo Mãe. Em 2006 tornei-me membro da Associação de Voluntariado do Hospital de V. N. de Famalicão como voluntária e coordenadora na área de oncologia.

          Em 2007 voltei aos estudos académicos. Estava ainda por realizar o sonho de uma licenciatura. E na Universidade Católica, entre as Teorias da Arte, História da Arte, Estética, Crítica de Arte, Iconografia, etc., conclui o curso de Estudos Artísticos e Culturais em 2010.

          Entretanto, no Teatro do Campo Alegre no Porto, cursei o “Laboratório de Leitura Poética” níveis I e II, com a técnica de voz e cantora lírica Ana Celeste Ferreira. Colaboro ainda em diversas tertúlias literárias e saraus de poesia. Em coautoria, participei em mais de duas dezenas de antologias poéticas. Em 2008 publiquei o primeiro livro de poesia “Os Degraus da Casa”. Sou membro de diversas associações artísticas e culturais. Algumas no estrangeiro.

          Com todas as provações e negações que a vida me aprontou, continuo uma pessoa positiva, otimista, lutadora e preparada para desafios. O único complexo que tive um dia, foi o de ser ”baixinha”, o que depressa me passou, quando ainda na escola se sentou a meu lado uma colega mais baixa que eu. Tenho também o vício de estar sempre ocupada. É nas artes da pintura e da escrita onde mais me realizo.

          Sempre me animou a ideia de viajar, chegar, partir e voltar. Nas viagens que fiz fora do país, sempre me senti uma cidadã do mundo. Estaria bem em qualquer parte, e em espírito, serei sempre uma eterna emigrante na ansia de realizar ainda outros sonhos.

          Como eu, muitas mulheres, dentro e fora da diáspora, sentiram algum tipo de discriminação. Algumas tiveram dificuldades de integração no mundo do trabalho, onde sei, que só com muito empenho e sacrifício se consegue a plena realização em qualquer profissão e muito mais na área das artes. Vejo a arte também como emancipadora. Através de meios comunicacionais comuns e tendências inatas, a arte aproxima as pessoas e ajuda a diminuir as diferenças. É também uma das minhas formas de comunicar, dialogar e denunciar injustiças sobre as mulheres no mundo. Defendo a liberdade, com valores e responsabilidade. Reconheço ter havido ao longo dos anos, muitos avanços na apreciação do trabalho das mulheres, seus direitos e regalias, mas estou certa que haverá ainda muito por fazer. Não percamos nunca a capacidade de sonhar!

          Termino com uma frase de Mário Zambujal:

        “ A mulher é o poema de Deus. O homem, a simples prosa”

 

20/9/ 2013

Filomena Fonseca

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