A
EMIGRANTE QUE NÃO FUI
Após um honroso convite para escrever algo
relacionado com a realidade da mulher na vida, na diáspora e nas artes, tentei
conjugar as várias vertentes, contribuindo através do testemunho da minha
própria experiência. Não porque eu tenha sido verdadeira emigrante, mas porque
sempre o quis ser e me senti impedida por diversas vezes.
Enquanto, ainda hoje, muita gente tem
grande relutância em emigrar e vê a coisa sempre pela necessidade e pela
negativa eu, pelo contrário, sempre tive vontade de alargar os meus horizontes
e conhecer novas terras, outros povos e outras culturas. Como disse um dia D.
Manuel Clemente, nós descendemos em grande parte de povos que por aqui passaram
e se instalaram. Não admira pois, que muitos tenham vontade de sair e se
aventurem. Está-lhes no sangue. Se assim não fosse, não teria havido os
descobrimentos. Talvez também daí, a grande capacidade dos portugueses em se
integrarem facilmente nos países de acolhimento.
Para mim, a palavra emigração
significa aventura, com todos os predicados subjacentes. Mas nunca foi e nunca
será sinónimo de facilitismos ou liberdade sem regras. Muito menos para as
mulheres sonhadoras e atentas à realidade. Como dizia Maria Lamas: “ Tudo vem do sonho. Mas só os sonhos em
ação têm força criadora”. Será, assim, sinónimo de dinamismo, trabalho,
ambição, vontade, evolução, etc.
Sempre tive muita curiosidade e grande
fascínio pelas pessoas e por tudo o que aparecia de novo. Criava os meus
próprios brinquedos, a partir do que via nas festas da aldeia. Tudo servia para
dar azo à minha imaginação. Desde muito cedo manifestei um dom para o desenho.
Passava o tempo a desenhar e a ler. Aprendi também trabalhos manuais, como: crochet,
costura, tricot, bordados, etc.
Na época, a maioria das mães, não
tinha voz ativa dentro das suas próprias famílias. Eram impedidas de tomar
iniciativas e vistas sobretudo como objetos de trabalho doméstico. Incluo aí
também a minha mãe, subjugada às ideias do marido. Só subtilmente e à socapa, resolvia
situações de acordo com suas ideias próprias. Tinha o seu emprego e também em
casa, sempre a vi a trabalhar. Quantas vezes, atarefada e a precisar da minha
ajuda, desde que me visse com livros, dizia: “Deixa-te estar!” Como
ela me compreendia! Talvez estivesse me projetando os seus próprios sonhos. Bem
diferente de meu pai. Muitos chefes de família eram dominadores, junto de suas
mulheres e filhas. Não as valorizavam.
Era eu adolescente e havia na minha
terra um grupo de teatro amador. Assistia a todos os espetáculos. Um dia
convidaram-me a entrar numa peça. Ensaiei três vezes sem meu pai saber. Logo
que soube, disse: “ Mulheres no teatro, nem pensar!” E lá se foi a possibilidade
da minha 1ª experiência teatral. (Só muito mais tarde, consegui realizar esse
desejo, através de cursos de teatro e experiências em novela da SIC.)
Vivendo numa casa grande entre muros de
granito, pululavam em mim muitos sonhos. Porque não me conformava com a
supremacia das ideias maioritariamente masculinas, discriminatórias da minha
condição social, tive muitas vezes de remar contra a maré, desobedecendo por
vezes a meu pai, que nem queria que eu estudasse. Na época, poucas mulheres
estudavam e só a insistência duma professora o conseguiu convencer. Mas sem
hipótese de qualquer reprovação. Seria condição suficiente para não voltar à
escola. Isso fez-me criar a noção da responsabilidade pelos meus atos, e aliada
à minha grande sede de saber, ainda hoje latente, resultou em grande
empenhamento e luta pelos meus objetivos.
Aos 12 anos de idade vi, com
alegria, o meu primeiro poema publicado num jornal escolar. Mas fui sempre muito
contrariada em meus anseios. Quis ser professora e não me deixaram. Obrigada a
trabalhar aos 15 anos, após o Curso Comercial, aproveitei o primeiro emprego
que apareceu, num escritório de empresa do ramo alimentar. Aos 17 anos chefiava
o escritório duma fábrica de malhas e confeções com 65 pessoas. Entretanto, um
namorado quis casar comigo e acharam que era cedo demais. Como iria viver para
Sintra, era muito longe…!
Tirei a carta de condução (coisa rara
para mulher), tinha 19 anos. Nessa altura uma amiga que, como eu, adorava os
idiomas de francês e inglês, propôs-me ir trabalhar e estudar na Inglaterra.
Arranjou em Londres emprego para as duas e sonhei ir com ela. Na hora de tirar
o passaporte, meu pai voltou a dizer “não!” e ela foi-se embora sozinha. É
hoje uma mulher bem-sucedida da diáspora. Visito-a em Hamburgo, no norte da
Alemanha.
Pouco tempo depois, uma vizinha quis
levar-me para os Estados Unidos e voltei a ouvir uma nega. Essa amiga, é também
uma empresária de sucesso em Nova Iorque.
Movida pela força de vontade de
evolução contínua, e não podendo largar o emprego, quis retomar os estudos em
horário noturno, e ouvi então dizer: “Aqui, mulher não sai à noite!”. Sempre
“aprisionada”, só quando passei à maioridade (21anos) me senti eu própria,
tornando-me independente e financeiramente autónoma. Fui-me aventurando à vida, sem nada esperar de quem quer que
fosse.
Aos 23 anos realizei o sonho de viver
na minha própria casa, adquirida com algumas economias, proventos das minhas
habilidades e um pequeno empréstimo bancário.
Aos 26 anos ingressei nos quadros do
Banco Português do Atlântico, hoje Millennium Bcp. Vivi sempre do meu ordenado,
sem imaginar que pudesse um dia existir qualquer ajuda do Estado se eu não
trabalhasse. Por isso, ia aprendendo tudo o que estivesse ao meu alcance para
me valorizar. Um dia, vi afixado na minha agência bancária, o anúncio de um concurso
para promotores comerciais. Até aí, só havia promotores/homens. Concorri,
escrevendo uma carta para o efeito. Estando esta já terminada, reli-a e pensei:
”
Sou mulher. Às tantas a carta vai parar ao lixo. Vou já alertar
para isso!”. Então acrescentei no final da carta: “Pelo facto de ser mulher, julgo
não ser condição suficiente para me excluírem do concurso. Entendo que o
trabalho, desde que bem executado, poderá ser feito por ambos os sexos”.
Venci, assim, o desafio, tornando-me a 1ª Mulher Promotora Comercial bancária
da zona norte do país. Também por isso, fui convidada a promover a venda dos
primeiros seguros na banca portuguesa, em parceria com uma companhia de seguros.
Estávamos em 1989. Foram ótimas experiências de trabalho, que me deram muito
prazer e me levaram a receber variados prémios. Sempre atendi emigrantes e
dentro do serviço de emigração, li muitas das suas cartas, traduzindo os seus
anseios e satisfazendo os seus pedidos.
Quando sonhei ter o meu primeiro
automóvel, fui em par-time, demonstradora e vendedora de trens de cozinha da
marca italiana IMCO. Após treze meses, chegou o carro novo que paguei a pronto.
Mas as minhas tendências mais inatas,
eram para as artes. Queria dedicar-me à pintura e o tempo escasseava, meu sonho
esvanecia.
Em 1980, a convite de uma amiga
emigrante, fiz a minha primeira viagem a Paris, de comboio, por quinze dias.
Aí, o sonho renasceu com toda a pujança, já que, à minha volta se respirava a
arte. Era ali mesmo que queria ficar! Aproveitei uma semana para visitar os
museus. A outra, para comprar material e comecei aí a pintar. Ainda frescos e
com todo o cuidado, trouxe três telas pintadas a óleo. Mal cheguei a Portugal,
como havia várias agências do Banco em França, logo tratei de saber como
poderia ir trabalhar e viver em Paris. Mais uma vez, e para meu desconsolo, outra
resposta negativa. Em Lisboa disseram-me que o meu pedido teria sido aceite se
o tivesse feito no ano anterior, dado a emigração, entretanto, ter diminuído
bastante.
Restaram-me os sonhos e a minha arte.
Após mais uns quantos quadros pintados, mostrei-os a uma jornalista e crítica
de arte do Porto, Anabel Paúl, que me incentivou a apresentá-los ao público, o
que veio a acontecer em 1983 em exposição coletiva no Sindicato dos Bancários
do Norte. Em 1987 realizei a minha primeira exposição individual na Póvoa de
Varzim. Através de livros, alguns mestres, aulas na ESBAP e experimentando
diversas técnicas, continuei na arte. Tinha 36 anos quando faleceu minha mãe e
meu pai logo a seguir.
Nos finais do século passado, por
motivos de saúde, aposentei-me do trabalho no Banco. Em 2005 interessei-me pela
escrita criativa, num curso com o escritor Válter Hugo Mãe. Em 2006 tornei-me
membro da Associação de Voluntariado do Hospital de V. N. de Famalicão como
voluntária e coordenadora na área de oncologia.
Em 2007 voltei aos estudos
académicos. Estava ainda por realizar o sonho de uma licenciatura. E na
Universidade Católica, entre as Teorias da Arte, História da Arte, Estética,
Crítica de Arte, Iconografia, etc., conclui o curso de Estudos Artísticos e
Culturais em 2010.
Entretanto, no Teatro do Campo Alegre
no Porto, cursei o “Laboratório de Leitura Poética” níveis I e II, com a
técnica de voz e cantora lírica Ana Celeste Ferreira. Colaboro ainda em
diversas tertúlias literárias e saraus de poesia. Em coautoria, participei em
mais de duas dezenas de antologias poéticas. Em 2008 publiquei o primeiro livro
de poesia “Os Degraus da Casa”. Sou membro de diversas associações artísticas e
culturais. Algumas no estrangeiro.
Com todas as provações e negações que
a vida me aprontou, continuo uma pessoa positiva, otimista, lutadora e preparada
para desafios. O único complexo que tive um dia, foi o de ser ”baixinha”, o que
depressa me passou, quando ainda na escola se sentou a meu lado uma
colega mais baixa que eu. Tenho também o vício de estar sempre ocupada. É nas
artes da pintura e da escrita onde mais me realizo.
Sempre me animou a ideia de viajar,
chegar, partir e voltar. Nas viagens que fiz fora do país, sempre me senti uma
cidadã do mundo. Estaria bem em qualquer parte, e em espírito, serei sempre uma
eterna emigrante na ansia de realizar ainda outros sonhos.
Como eu, muitas mulheres, dentro e fora da diáspora, sentiram algum tipo
de discriminação. Algumas tiveram dificuldades de integração no mundo do trabalho,
onde sei, que só com muito empenho e sacrifício se consegue a plena realização
em qualquer profissão e muito mais na área das artes. Vejo a arte também como
emancipadora. Através de meios comunicacionais comuns e tendências inatas, a
arte aproxima as pessoas e ajuda a diminuir as diferenças. É também uma das minhas
formas de comunicar, dialogar e denunciar injustiças sobre as mulheres no
mundo. Defendo a liberdade, com valores e responsabilidade. Reconheço ter
havido ao longo dos anos, muitos avanços na apreciação do trabalho das mulheres,
seus direitos e regalias, mas estou certa que haverá ainda muito por fazer. Não
percamos nunca a capacidade de sonhar!
Termino com uma frase de Mário Zambujal:
“ A mulher é o poema de Deus. O homem,
a simples prosa”
20/9/ 2013
Filomena
Fonseca
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