sexta-feira, 11 de maio de 2012

SAUDADES DE MARIA ARCHER Maria Manuela Aguiar



Poderão  perguntar porque se envolveu a Assoc MM na evocação de Maria Archer, em sucessivas iniciativas -  no Encontro Mundial da Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, na comemoração do Dia Internacional da Mulher, 2012, na cidade de Espinho e, agora, em Lisboa, nesta sessão que nos reúne no Teatro Nacional da Trindade.
Responderemos que razões não nos faltam para  justificar o empenhamento cívico e o sentido ético com que o fazemos. Uma primeira razão tem evidentemente a ver com o facto de Maria Archer ter sido uma Portuguesa expatriada. Uma grande Portuguesa da Diáspora, que, desde a sua juventude, passou largos anos em cinco países da lusofonia, e em 3 continentes,  olhando sempre em volta, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que  soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e, também, de muito interesse etnológico, sociológico e político.... Seria motivo bastante para nos lançarmos na aventura de partir à procura desse legado multifacetado e vasto, que guarda  experiências e segredos de tanta gente
 e de tantas terras.  Mas há mais...

Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por saber captar as constantes da natureza humana, ou por se constituir na memória crítica de um tempo português, que foi opressivo e cinzento, pautado por estreitos conceitos e por regras de jogo social e político, que  inteligentemente desvenda e que põe em causa,  sem contemplações.
 Ninguém como ela retrata a vida quotidiana desse Portugal estagnado e anacrónico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade,  em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres,  em particular, são  dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, depois de terem sido deformadas pela educação. Tendo por pano de fundo os estereótipos impostos para o relacionamento de sexos, a entronização rígida dos papéis de género dentro da famílias e as consequentes desigualdades, distâncias e preconceitos sociais, num doloroso e longo impasse da nossa história colectiva, .Maria Archer vai dar presença às portuguesas suas contemporâneas, tal como elas foram, com um realismo, que é, sem dúvida e quer ser, uma busca e uma evidência da verdade - doa a quem doer e  para que se saiba... então e no futuro.

 Na melhor tradição nacional, Maria Archer, a mais feminista das escritoras portuguesas, é uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza e de distinção e  ter  uma carreira  no jornalismo e  nas Letras , em simultâneo,  fazendo combate pela dignidade  e pela  afirmação das capacidades intelectuais e profissionais negadas à mulher..
 Ousou fazer um nome no mundo fundamentalmente másculo da cultura portuguesa.  Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...

Na verdade, por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - aliás, uma afirmação que se deve generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX, que dão rosto à exposição da Câmara Municipal de Espinho, há pouco, inaugurada aqui, nas salas e corredores do Teatro da Trindade.
Maria era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários  em que estiveram a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas ou o Conselho Nacional Das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas  que, no período de declínio desses movimentos e de desaparecimento de uma geração incomparável,
continuou, a seu modo, solitariamente, uma luta incessante contra o obscurantismo,que condenava a metade feminina de Portugal à subserviência, à incultura, ao enclausuramento doméstico.

 Maria Archer foi uma inconformista,  consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em particular das  que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade  retrógrada e, como se diria em linguagem actual, "fundamentalista", em que o regime  impôs a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcalismo ancestral.
A escrita, servida pelos dons de inteligência, de observação e de expressividade  foi  para Maria Archer uma arma de combate  político. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante". 
É um combate em que a sua vida e a sua arte  se fundem - norteadas por um ostensivo  propósito de valorização dos valores femininos, de libertação da mulher e, com ela, da sociedade como um todo.
Ela é já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um  tão longo exílio ...

 Maria Archer é uma grande escritora (ou um grande escritor, como alguns preferem precisar, alargando o campo das comparações possíveis). E pode ser lida apenas como tal. Mas permite -nos também diversas outras leituras.
 Uma leitura sociológica, antropológica, política...
 Ninguém. como ela , escrutinou e caracterizou o pequeno mundo da sociedade portuguesa da 1ª metade do século XX, das famílias, pobres ou ricas, decadentes ou ascendentes, aristocratas, burguesas, "povo" - todos  imersos na nebulosa de preconceitos de género e de classe, de vaidades, de ambições, de prepotências e temores...
"Aurea mediocritas", brandos costumes implacáveis... o mundo de contradições   de um Estado velho, que se chamava Estado Novo.
 Ou uma leitura feminista... Ninguém como ela conseguiu corroer essa imagem da "fada do lar", meticulosamente construída sobre a ideia falsa da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia corporativa do regime), da falsa brandura do autoritarismo e da subjugação no círculo pequeno da família como no mais alargado, o  do País. Maria Archer é uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O rigor da narrativa, a densidade das personagens, a qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos do regime, a força subversiva da  denúncia. Na crueza da palavra. Na nitidez do traço... 
O regime não gostou desses retratos femininos, como não gostava da Autora. Primeiro, tentou desqualificá-la, desvaloriza-la . Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que em contra-corrente , num texto com laivos misóginos,  a apresenta como apenas uma mulher a falar de coisa ligeiras e desinteressantes, (como o destino das mulheres....). Sintomático também que a crítica seja divulgada pela própria editora da romancista. a par de tantas outras, todas de sentido contrário.
Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: os seus livros foram  apreendidos,  os jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento... Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última e infindável aventura de expatriação, de onde só viria, envelhecida e fragilizada, para morrer em Lisboa.

Mas o desterro não era pena bastante! Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher"
afirma que Maria Archer foi deliberadamente apagada da História. Sim, o ser emigrante é já factor comum de esquecimento, como que  natural, na memória da Pátria, mas este caso foi um caso mais grave, e doloso...
Uma outra razão  para intervirmos, pois ainda é tempo de vencermos  o  acto persecutório, implacavelmente executado há décadas, para restituirmos à vida e obra de Maria Archer o lugar que lhes é devido no mundo vivo da
 cultura portuguesa...
E se é certo que revisitar a Mulher de Letras, através dos seus escritos, tem, da nossa parte,  esse objectivo proclamado de desvendar o passado, de lançar luz sobre a realidade insuficientemente analisada e realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50,  é também um momento mágico de reencontrar a própria Maria Archer,  bem viva em páginas fulgurantes de tantos dos seus livros, artigos, crónicas - sobretudo quando fala na primeira pessoa do singular. Pela elegância do seu estilo, torna-se, afinal, sempre um prazer acompanhá -la nas incursões ao universo bafiento e confinado que se confrontaram e conviveram as portuguesas e os portugueses durante meio século - e em que as personagens femininas raras vezes cumprem as suas  capacidades e os seus sonhos (mesmo que modestos), e os enredos quase nunca têm um fim feliz  - ou justo...

Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim...
Até ao fim, não! Estamos aqui justamente reunidos pelo projecto de lhe assegurar uma segunda vida, no sentido em que  Pascoaes dizia: "Existir não é pensar, é ser lembrado".
Este não é o primeiro nem será o nosso último encontro sobre ela, a sua personalidade, o seu exílio, o seu retorno... Talvez um próximo encontro aconteça em São Paulo... sobre a obra ou a pessoa  - qual delas a mais interessante?
A pessoa é certamente tão fascinante como a mensagem da escritora. E ainda mais desconhecida.
Mas só assim continuará se não quisermos conhecê-la, porque ela está lá, eternamente jovem e vibrante, em muitas das páginas que nos deixou, para poderemos ler e reler.
Dizia a   Mariana desse esplêndido romance que é  o "Bato às portas da vida": "Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo"
E nós queremos, afinal, andar na saudade de Maria Archer, reencontrada no nosso tempo, que esperamos seja o do  início do  correr interminável do seu tempo futuro..

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