terça-feira, 1 de maio de 2012

HOMENAGEM A MARIA ARCHER INTERVENÇÃO DE MESTRE DINA BOTELHO


 Muito boa tarde a todos.
 Começo por cumprimentar os meus companheiros de mesa e todos os que se quiseram juntar a nós nesta justa homenagem a Maria Archer, uma das nossas melhores escritoras da primeira metade do séc. XX.
 Aproveito também para agradecer o convite que me foi endereçado pela Associação Mulher Migrante, através da Dra Rita Gomes, a quem dou desde já os parabéns por ter organizado mais esta homenagem a Maria Archer desta vez em Lisboa, que se segue à da Maia, no final do ano passado, e à de Espinho no dia da Mulher.
Maria Archer, escritora é o tema que eu tenho para desenvolver. Depois de aqui se ter falado da Maria Archer mulher, irei abordar a Maria Archer escritora que não está tão dissociado assim da sua posição enquanto mulher, como iremos ver.
Eu tomei contacto com Maria Archer num alfarrabista de Lisboa relativamente perto do local onde hoje nos encontramos. Hoje, e ainda bem que assim é, temos já 3 livros de Maria Archer reeditados e que podem ser comprados nas livrarias Ela é apenas mulher, Nada lhe será perdoado e Memórias da linha de Cascais, dois deles (os 2 primeiros) graças à editora Parceria António Maria Pereira que apostou na sua republicação e portanto não é só através de alfarrabistas que podemos tomar contacto com a sua escrita, que considero ter sido um marco para a época em que viveu e é nesse sentido que sempre me deram testemunho quando dela falo com pessoas mais velhas.
 Maria Archer foi uma das poucas mulheres do seu tempo a ter como profissão a de jornalista e escritora. Ela publicou de 1920 a 1963, tendo havido dois anos em que publicou 4 livros por ano (1938 e 1950) e alguns dos seus livros chegaram mesmo à 3ª edição como por exemplo Há de Haver uma Lei e Aristocratas.
 Ela é Apenas Mulher é de 1944 e no mesmo ano saiu a 2ª edição tendo chegado à 3ª edição em 1952. Escreveu, pois, 31 livros de 1935 a 1963, 5 deles no Brasil (Terras Onde se Fala Português, África sem Luz, Brasil, Fronteira de África, Os últimos Dias do Fascismo Português e do último nada se sabe), cinco peças de teatro e três traduções. Mas não se julgue que era fácil ser uma mulher escritora na época. Este é outro reconhecido mérito de Maria Archer. Muitas mulheres da época, tais como Maria Lamas e Irene Lisboa, esconderam-se atrás de pseudónimos, quer femininos quer masculinos, para poderem escrever à vontade sem penalizarem a sua vida pessoal ou até mesmo para obterem maior imparcialidade por parte da crítica. Se agora temos muitas mulheres escritoras, no início do séc. XX, quando uma mulher queria escrever sobre outro tema, que não a vida doméstica ou a educação dos filhos, refugiava-se atrás de um pseudónimo.
Maria Archer nunca se escondeu, nunca usou pseudónimos. Talvez esse mesmo facto tenha levado ao afastamento da família que, por vezes, não viu com bons olhos certas publicações suas. Também o seu divórcio (esteve casada apenas 10 anos durante os quais publicou apenas em periódicos) poderá ter tido alguma base na sua profissão apesar da causa pública do mesmo ter mais a ver com questões familiares (sevícias e injúrias graves) e menos profissionais. Maria Archer viveu numa época em que era suposto a mulher ser apenas boa filha, boa esposa e boa mãe. As únicas atividades permitidas à mulher eram a lida doméstica e a educação dos filhos. Maria Archer dizia que escrever era fugir ao longo silêncio a que a mulher da época estava votada. Até o acesso à cultura é negado à mulher na época, como Maria Archer retrata bem na personagem de Adriana (de Casa sem Pão) que tinha de se esconder para ler livros. Houve mesmo casos em que a crítica a um livro escrito com pseudónimo masculino era otimista e depois de se saber que havia sido escrito por uma mulher, o mesmo crítico dizia o contrário do que havia dito antes.
 João Gaspar Simões foi, dos críticos literários da época, o que melhor entendeu a luta da mulher escritora. Disse ele que «Em Portugal uma mulher que queira falar de si mesma com franqueza equivalente à de um homem quase pudico corre risco de enxovalho»
 Maria Archer mostrou as vozes profundas do seu ser sem nunca recorrer a pseudónimos o que fez dela única na sua época e no seu meio.
 Ela partia do real e era esse real que interessava aos seus leitores. Ela própria reconheceu que a literatura feminina da sua época não era criativa «pois a mulher encontrava-se subjugada pela estrutura social e familiar repressiva.» Talvez por ter sido tão direta e tão profunda nas suas obras tenha visto duas delas (Ida e volta duma caixa de cigarros (1938) e Casa sem pão (1947) apreendidas pela Censura.
Mas passando agora à sua escrita em si. A preocupação/tema principal da sua obra era a situação da mulher e as dificuldades por ela sentidas. A vida da mulher, a sua relação com a família, com o trabalho e com os homens dominavam os seus romances e novelas. Mas se o tema dominante era o mesmo havia novidades em todas as suas obras. O estatuto social das mulheres que retratava era diferente, a mulher tanto era vítima como até brincava com os homens e por isso lia-se com empolgamento as suas obras. O seu conhecimento profundo do pensamento da mulher das várias classes sociais permitia-lhe falar com à vontade e realismo das suas vidas. Já João Gaspar Simões falava, em 1950, do seu «superior espírito de observação, penetrante análise social, sólida expressão literária, magistral equilíbrio no doseamento do imprevisto, pelo que não poderia deixar de ser considerada desde já um grande contista, um grande escritor» .
Pela sua obra passam desde a jovem inocente que vem da província para a cidade para trabalhar na casa senhorial por intercessão de uma tia (Esmeralda de Ela é apenas mulher) que conhece toda a vida diferente da cidade e se apaixona por um mulherengo que lhe jura fazer por ela todos os sacrifícios mas que, quando ela lhe diz que pensa estar grávida, a abandona e ela vê-se desgraçada, de volta à terra do Alentejo onde até os pais a tratam mal por terem tomado conhecimento do seu namoro na cidade. De regresso à cidade, já a pensar ganhar a vida com um trabalho decente verifica que é difícil uma jovem arranjar trabalho em Lisboa sem ter de “ser simpática para os homens”. Decide afinal casar por dinheiro e depois acaba por trair o marido com o homem que, nos primeiros tempos, a abandonara.
Também temos a mulher da alta sociedade que vive pelo dinheiro e pensa (Maria Benta de Aristocratas p.129) que «na vida tudo falha, menos o gosto de gastar dinheiro, de ter dinheiro, de fazer coisas que se podem fazer com dinheiro». É esta a personagem que considera que com 20 anos a jovem deve casar. Também a única personagem da comédia “Alfacinha” se preocupa com o facto de ter vinte anos e ainda não ter casado. Neste caso vemos uma jovem da burguesia que apesar de amar muito um jovem, como este ainda pensava tirar o curso o que pressupunha uma espera de 5 anos, ela decide jogar com vários outros mostrando toda a sua arte de sedução para ver qual decide casar com ela enquanto ainda «fazia vista».
Também a vivência de uma vida de aparências e de preconceitos pode ser vista em Filosofia duma mulher moderna onde vemos uma mãe aristocrata (“Sujeição”) a convidar a filha e o marido, de quem esta está separada, para almoçarem em sua casa ao domingo. Também o drama da solteirona, cujo pai foi para África para casar as filhas que viam no casamento uma libertação, tendo na época, ao contrário das irmãs, decidido não casar, quando o quis fazer já era tarde de mais.
 Em Ida e volta duma caixa de cigarros temos a descrição pormenorizada de uma mulher que vive o prazer do sexo em sucessivos encontros até que vê o seu sonho destruído por uma mulher que reclama «os direitos do seu ventre fecundado» e depois vinga-se do homem que entretanto conhece e que por ela demonstra amor. Mas com nenhum dos dois fica. Conhecera o amor verdadeiro e o amor carnal, agora queria o amor integral.
 No romance Bato às Portas da Vida temos o problema da adolescência gerida pelas aparências, a necessidade de, independentemente de como se ganha o dinheiro, aparentar um estatuto superior ao que se poderia alcançar, mas que vem de família. Mais uma vez temos a jovem voluntariosa que rejeita vender-se por um estatuto mas que depois de ter o seu dinheiro fruto de árduo trabalho, acaba por casar entregando o seu dinheiro ao marido, que lho rouba quando se separam. A solidão é uma constante deste romance onde as decisões mais importantes são tomadas por ela sem qualquer apoio.
Mas também temos, como disse no início, a vítima que ama e se vê traída ( a Adriana de Casa sem pão) mas que salva a casa quando o marido perde o emprego, fazendo traduções. Conhecemos o marido com dupla vida. O marido que reconhece a mulher como santa mas a quem não deseja. O que quer a mulher que todos desejariam ter e por isso casa com ela e nem imaginaria separar-se dela.
 Em Nada lhe será perdoado conhecemos o drama de uma mulher enganada até aos 41 anos pela família do marido e por ele. Vê-se obrigada a refazer a sua vida, não conseguindo permanecer muito tempo nos vários empregos por ter sido educada «para menina rica, para ser servida, para a inutilidade.»
 Maria Archer queixou-se de como as mulheres escritoras têm de trabalhar «Trabalhamos sem poder sair do círculo de arame farpado com que o clã e a sociedade nos limitam a criação» (in “Revisão de conceitos Antiquados”, Ler, out. 1952) mas parece que ela conseguiu sair desse círculo mostrando e descrevendo a vida social da época como nenhuma outra. Também como contista sobressai. É João Gaspar Simões (em Filosofia de uma mulher moderna) que diz que Maria Archer em alguns contos de Há-de Haver uma Lei nos faz pensar em Eça de Queirós e Singularidades de uma rapariga loira. Diz mesmo que ela se aparenta a Camilo. Diz-nos o mesmo ensaísta que se existir um tema nos seus contos este é o tema social: a rebelião da mulher contra as normas sociais sacrificadoras da sua sagrada independência». O conto de Maria Archer é o conto de fundo social, o conto de costumes.» Ela é considerada por ele «um dos nossos primeiros contistas contemporâneos, um dos nossos mais fortes temperamentos de escritor».
Termino apresentando duas citações da própria Maria Archer seguidas de um desafio: «Saibam quantos fazem coro no desprestígio da obra literária das mulheres que os nossos livros são momentos heróicos. Custam-nos coragem, e angústias, que os homens, para igual feito, desconhecem de todo» (in “Revisão de Conceitos Antiquados” Out. 1952) «Eu precisarei de morrer para que a minha obra seja avaliada na altura que eu lhe atribuí quando a escrevi – como um documento histórico duma época e da situação da mulher. » (1973) Lanço então o desafio – Não deixemos que a sua obra morra, pois muito ainda há a fazer, nomeadamente estudos sobre os seus cadernos coloniais e estudos sobre as suas peças de teatro. Devemos enaltecer e reconhecer a sua luta pela dignificação da condição da mulher através da apresentação da realidade que a mulher da sua época vivia. A vida da mulher de meados do séc. XX não está bem conhecida – os jovens de hoje não a conhecem e através da obra de Maria Archer poderão conhecê-la.
É também com satisfação que vejo que investigadores de outros países se interessam por esta nossa escritora e escrevem artigos e teses sobre ela. Aproveito para mencionar a dra Elizabeth, aqui ao meu lado, da Universidade de Mato-Grosso que se entusiasmou com a minha tese de mestrado sobre Maria Archer e sobre ela escreveu a sua tese de doutoramento tendo por base a sua vertente mais jornalística. Bem hajam todos por nos fazerem reviver a vida da mulher do início do séc. XX nas suas diversas vertentes.

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