terça-feira, 4 de setembro de 2012

Andamos na saudade de Maria Archer

Para uma associação de estudos sobre as mulheres da emigração, como é a nossa, Maria Archer é certamente uma personalidade inspiradora, que convida à pesquisa, à reflexão e ao diálogo. Começámos por a lembrar no Encontro Mundial de Mulheres Portuguesas da Diáspora, em Novembro de 2011, justamente porque nesse congresso pretendemos partir da história da emigração no feminino, traçando, por um lado, as linhas de evolução de mais de um século de migrações portuguesas, com participação crescente de mulheres, e, por outro, dando-lhes visibilidade, não só mas também, numa área em que podemos considerar que têm estado, pelo menos, tão presentes como os homens: o domínio da Cultura, do ensino da Língua, das Letras e das Artes.

Por ambos os caminhos, os da História e os da Cultura, encontrámos Maria Archer.
Ela voltou, seguidamente, ser figura de cartaz na comemoração do Dia Internacional da Mulher. Uma "entrevista imaginária" com a grande escritora, protagonizada por jovens das Escolas de Espinho, deu a esse evento simples e didáctico um toque original e comovente...
E agora, aqui, em Lisboa, no Teatro Nacional da Trindade, partilhamos de novo, a força do seu pensamento e ideais, na evocação da sua vida e obra tão bem conseguida em sucessivas intervenções – neste espaço esplêndido, no salão nobre onde ela própria esteve inúmeras vezes – contando com muitas das pessoas que a conheceram bem, e com a presença e a palavra, tão honrosas para nós e tão prestigiantes para a sua memória, da Dr.ª Maria Barroso e do Presidente Mário Soares, símbolos da luta vitoriosa pelo Portugal em liberdade, em democracia, que ela sonhou.

Razões não nos faltam para justificar o empenhamento cívico com que, assim, fazemos de Maria Archer uma companheira de jornadas sobre as temáticas de género, no universo das migrações. Ela foi, de facto, uma grande Portuguesa da Diáspora. Sê-lo-ia, em qualquer caso, como intelectual, jornalista, romancista, mas foi - o, igualmente, como verdadeira precursora na pesquisa e divulgação de usos e costumes dos povos com os quais se viu em contacto. Primeiro em África, muito jovem, a acompanhar os Pais por terras do” Ultramar", depois, já sexagenária, no exílio brasileiro, passou largos anos em cinco países lusófonos, dispersos em três continentes, sempre atenta ao que acontecia em seu redor, com uma inteira compreensão das pessoas, dos ambientes, dos meios sociais, que soube traduzir em dezenas de escritos de incomensurável valor literário e de enorme interesse etnológico, sociológico e político....

Seria motivo bastante para partirmos à descoberta desse legado multifacetado e vasto, que, num estado de quase hibernação, guarda experiências e segredos de tantas gentes e vivências. De um amor por África, de um enraizamento no mundo lusófono, que o nosso anfitrião Dr. Vítor Ramalho tão bem soube focar.

Mas há mais! Maria Archer é uma daquelas figuras do passado, que é intemporal, por saber captar as constantes da natureza humana - sem deixar de ser, também, testemunha, memória crítica de um muito concreto tempo português, opressivo e cinzento, pautado pelo anacronismo das ideias e das regras de jogo social e político, que desvenda e põe em causa, com lucidez e fulgor - e sem contemplações. Ninguém, como ela, retrata o quotidiano desse Portugal estagnado e arcaico, avesso a qualquer forma de progresso e de modernidade, em que os mais fracos, os mais pobres não têm um horizonte de esperança, e as mulheres, em particular, são dominadas pela força das leis, pelo cerco das mentalidades, pela censura dos costumes, pelo confinamento da educação - tendo por pano de fundo as normas impostas para o relacionamento de sexos, com a entronização rígida dos papéis de género dentro da família, e as consequentes desigualdades, e preconceitos sociais, o doloroso e duradouro impasse de uma sociedade fechada ao curso da História, que acontecia na Europa e por esse mundo fora.

Maria Archer vai dar vida às portuguesas suas contemporâneas, revelando-as tal como elas são, com um realismo, que é, sem dúvida, uma busca uma evidência da verdade, doa a quem doer e para que se saiba... então e no futuro.

Nos seus "apontamentos de romancista" (em "Eu e elas", escrevendo sobre si e sobre os outros, com um fino sentido de humor e toda a "joie de vivre" )) confidencia-nos :"O meu trabalho neste livro foi quase o de um artista plástico. Moldei a obra sobre o modelo vivo".
Fica-nos a impressão de que essa foi uma metodologia que usou largamente…

A mais feminista das escritoras portuguesas, é, contrariando estereótipos universais (embora não o que podemos considerar a melhor "tradição nacional"), uma "feminista muito feminina", que ousou ser um ícone de beleza, ter uma carreira no jornalismo e nas Letras, fazendo, em simultâneo, combate pela dignidade e pela afirmação das capacidades intelectuais e profissionais negadas à mulher comum.
.Ousou fazer um nome no mundo essencialmente masculino da cultura portuguesa.
Ousou ser Maria Archer, sem pseudónimos...

Na verdade, por tudo isto, julgo que podemos dizer que ela é mais do nosso tempo do que do seu tempo - aliás, uma afirmação que se deve generalizar às mais notáveis feministas do princípio do século XX, as que dão rosto à exposição da Câmara Municipal de Espinho, há pouco, inaugurada aqui, nas salas e corredores do Teatro da Trindade.

Maria Emília era, então, demasiado jovem para poder participar nos movimentos revolucionários, em que estiveram envolvidas a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, mas iria ser uma das poucas que, no período de declínio desses movimentos (e de desaparecimento de uma geração ímpar), continuou, a seu jeito, solitariamente, uma lide incessante contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina de Portugal à subserviência, ao enclausuramento doméstico e à incultura.

Foi uma inconformista, consciente das discriminações e das injustiças, em geral, e, em especial, das que condicionavam o sexo feminino, numa sociedade retrógrada e "fundamentalista", como dizemos hoje daquelas em que o Estado impõe a regressão às doutrinas e práticas de um patriarcado ancestral, contra o qual, se revoltou, naturalmente...

A escrita, servida pela inteligência, pela capacidade de observação e expressividade, foi para ela uma arma de combate político. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante".
É um combate em que a experiência de vida e a sensibilidade artística se fundem - norteadas por um declarado propósito de valorização do ser feminino e da sociedade como um todo.
É já uma Mulher livre num país ainda sem liberdade - coragem que lhe custou o preço de um tão longo exílio ...

Maria Archer é uma grande escritora (ou um grande escritor, como alguns preferem precisar, alargando o campo das comparações possíveis). E pode ser lida apenas como tal. Mas permite - nos também diversas outras leituras - para além da literária, a sociológica, a etnológica, a feminista...
Ninguém, como ela , escrutinou e descreveu o pequeno mundo da sociedade portuguesa da primeira metade do século XX, os pobres e os ricos, as famílias decadentes ou ascendentes, aristocráticas, burguesas, o povo" . Mulheres e homens imersos na nebulosa de preconceitos de género e de classe, de vaidades, de ambições, de prepotências e temores... "Aurea mediocritas", brandos costumes implacáveis... o mundo de contradições do Estado velho, que se auto-proclamava "Estado Novo".

Gostaria de realçar a"leitura feminista, porque ninguém conseguiu, como ela, soube corroer essa imagem da "fada do lar", laboriosamente construída sobre os conceitos falsos da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia do regime “corporativo") e da brandura de costumes - assente, porém, no autoritarismo e subjugação ao "pater familias" no pequeno círculo do lar, ou ao ditador paternalista no círculo alargado ao País.
Maria Archer é uma retratista magistral da mulher e da sua circunstância... O rigor da narrativa, a densidade das personagens, a qualidade literária, só podiam agravar, aos olhos do regime, a força subversiva da denúncia.
Os poderes constituídos não gostaram desses retratos de época, como não gostavam da sua Autora. Primeiro, tentaram desqualificá-la, desvalorizando-a. Sintomática a opinião de um homem do regime, Franco Nogueira, que em contra-corrente, num texto com laivos misóginos, a apresenta como uma mulher a falar de coisa ligeiras e desinteressantes (por tal entendendo a realidade do destino das mulheres, coisa para ele tão sem importância....). Sintomático também que a crítica seja divulgada pela própria editora da romancista, a par de tantas outras, de sentido oposto.

Não tendo conseguido os seus intentos, o Poder passou à acção: livros apreendidos, jornais onde trabalhava ameaçados de encerramento... Maria Archer viu-se forçada a partir para o Brasil - uma última aventura de expatriação, de onde só retornaria, doente e fragilizada, para morrer em Lisboa. Porém, o desterro não seria pena bastante. Teresa Horta, no prefácio da reedição de "Ela era apenas mulher afirma que Maria Archer foi "deliberadamente apagada da História".
Ser emigrante é já factor de esquecimento, regra geral inevitável, na memória da Pátria. Mas o seu caso foi mais grave, deliberado, doloso - ainda que, do nosso ponto de vista, não esteja definitivamente encerrado. É ainda bem possível combater esse acto persecutório, gizado e consumado há décadas.
 Como? Restituindo à obra de Maria Archer o espaço que lhe é devido no mundo eterno da cultura portuguesa, revisitando a Mulher de Letras, através dos seus escritos. Em momentos mágicos, percorramos com Maria Archer as páginas fulgurantes dos seus contos, romances e crónicas, desocultando o passado, lançando luz sobre a realidade insuficientemente analisada e realçada da sociedade portuguesa de 40 e 50!

A elegância do seu estilo tempera o cru realismo, o fundo pesado e dramático de qualquer narrativa e torna sempre um prazer a sua companhia nas incursões pelo universo bafiento e confinado em que se cruzaram e confrontaram as portuguesas e os portugueses durante meio século – um universo no qual as personagens femininas raras vezes cumpriram as suas virtualidades e esperanças (mesmo que modestas), e os enredos quase nunca têm um final feliz - ou justo...

Elegância é uma palavra que quadra com Maria Archer, que a caracteriza na maneira como pensou, como escreveu, como se vestiu e apresentou em sociedade, como atravessou uma rua de Lisboa ou de São Paulo, como atravessou uma vida inteira, até ao fim...
Fim não será a palavra mais apropriada... Estamos aqui justamente unidos pelo projecto de lhe assegurar uma segunda vida, objectivo perfeitamente ao nosso alcance, porque "existir não é pensar, é ser lembrado", como disse Pascoaes.
Esta não é, pois, a primeira nem será a nossa última reunião para falar sobre Maria Archer, o seu exílio, o seu retorno - o seu legado ou a sua pessoa - qual deles o mais interessante? A pessoa é certamente tão fascinante como a escritora. E mais desconhecida. Mas só assim continuará por omissão nossa, porque ela está lá, para sempre jovem e vibrante, nas páginas que nos deixou impressas.

Dizia a Mariana desse romance eminentemente "feminista" que é "Bato às portas da vida":
"Ando na saudade de mim, mesmo perdida no tempo".
E nós andamos na saudade de Maria Archer, perdida mas reencontrada no nosso tempo, que queremos seja o do início do correr interminável do seu tempo futuro...

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