segunda-feira, 4 de maio de 2009

MARIA GUERREIRO- Tempo de guardar / Olhar gavetas



Señora
Dra. Manuela de Aguiar

A Sra. Natalia Correia me solicitou um texto sobre meu trabalho.

Eu estive participando no Seminário Português “Encontros para a Cidadanía”.
“A igualdade de Homens e Mulheres nas Comunidades Portuguesas”.
America do Sul Bs.As. 2005
Nessa oportunidade falei sobre a mulher artista, o espaço que ocupava e que hoje ocupa na cultura, no mundo.

Não sei se é valida uma experiência minha como mulher e como artista, mas considero que é universal.
As mulheres alguma vez têm sofrido mudanças de casa, de país e de costumes. No simple ato de ter que descartar
Algumas coisas ou muitas já é um motivo para remover sentimentos.

Mudar coisas de lugar, fazer uma selecção e guardar aquelas que se levam. é todo um jogo.
Os espaços vazios que se produzem são motivos para pensar, para sentir pequenos lutos...más também são espaços que permitirão que nosso espírito, em um futuro, possa ter a sensação de estar completo com coisas novas.
Esses espaços vagos, são o motivo do meu trabalho.

Em homenagem a todas as mulheres que têm passado alguma vez por esta situação:
Tempo de guardar / Olhar gavetas

Meus melhores cumprimentos,
Maria Guerreiro

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Tempo de guardar / Olhar gavetas

… Levar à luz
Aquilo que está oculto, guardado, velado, escondido, como pequenos segredos
Descobri-los e mostrá-los
Atenta ao causal e ao caso fortuito
Escolher, descartar, deixar espaços vagos, embrulhar e guardar
É um jogo diferente, mas jogo ao fim


Gaveta I

Abri a gaveta...
Três estojos de óculos originam o cheiro
a couro o que se percebeu ao abri-lo.
Uma faca com cabo de prata para abrir cartas Quanto tempo esteve Miguel à tua procura!
Sempre pensou que te tinha perdido em uma das suas viagens
gostava de te levar consigo.
Um apontador e um gude de vidro, dos grandes, com o qual jogava de criança
de vidro azul-verde com estrias brancas.
Uma chave de bronze, que dava corda a um
antigo relógio que se cansou do tique-taque.
Tubos de vidro com minas pretas. Um carimbo com a assinatura de Miguel, com uma marca
Gallo y Torrado S.R.L. PLACAS GRABADOS TE. 31 4138 San Martín 506
Três notas de moeda brasileira, valores, 20, 10 e 5 cruzeiros
Uma nota mais, de 1 peso Moeda Nacional. Uma caixinha cor-cinza com cartões pessoais
Um chaveiro da Frota Mercante do Estado... abrir o passado


Gaveta II

A caixa de profundo azul, mostrava um dos seus lados marcado, estragado
Tentei tirar a tampa, foi muito mais fácil do que achava
Pequenas sacolinhas e estojos de joalharia, veludo vermelho, camurça preta e papéis brilhantes
agradável ver a variedade de cores e texturas.
Os brincos de ouro, com os quais perfuraram as orelhas de Marcela, dixes ganhos de presente, corações, mãozinhas, trevos
Uma cruz de prata, uma medalha da sua primeira comunhão, outra da Virgem quando criança, um braçaletinho com seu nome, um pesebre, preciosa miniatura feita em prata
Risinhos invadiram o lugar....
E meu sorriso quando me lembrava dela


Gaveta III

Todas as paisagens estão aqui, com as fortes cores dos cartões postais
Marrocos, Moçambique, Cabo Verde. Enviados pelo correio com breves cumprimentos
Outros, comparados para não esquecer, para guardar momentos duma viagem
Cartões postais incapazes de transmitir o vivido. Madrid, Lisboa, Roma...
O ar salgado em Vigo. As castanhas assadas em Lisboa e o ronronar do eléctrico.
A chuva molhando o corpo em Roma, no entanto ria e ria por motivos que não quero contar
Sol do Algarve, céu azul, os barcos pesqueiros, outra vez o sol no rosto
Novamente a chuva em Paris sentir a água nos sapatos, e nenhum táxi ao redor (por perto)
caminhar e caminhar., Paris, cor-cinza, Paris com nevoeiro, Paris molhado...comer uma panqueca
....descartar cartões postais.


Gaveta IV

Custou abri-la...Trancavam-na fitas que laçavam uma quantidade de cartas
agora espalhadas na gaveta. Observei os selos dos envelopes, era fácil ver
destinos e destinatários. Nas cartas lia arrivos e despedidas como se seguissem roteiros designados, como se nunca tivessem deixado de viajar
ARGENTINES FINE PIER FOOT 29Th STREET BROOKLYN N.YORK
...será até amanha.
...continuarei escrevendo.
...continuamos fundeados.
...desejo voltar logo.
Algumas fotografias antigas. Numa delas está escrito
Diaca Moçambique15/4/65.
Amostra ao tio Ricardo com dois filhotes de leão nos braços, a seu lado seu colega de viagem, por trás um pequeno aeroplano que ele dirigia
...Histórias, histórias...tudo pode ser reinventado.

2 comentários:

  1. O "Encontro" de Buenos Aires foi, de todos, aquele em que a componente cultural esteve mais presente, através de artistas portuguesas (es) ou argentinas (os)- da escrita, das artes plásticas, da arquitectura... Com intervenções assombrosas, no inspirador ambiente da sala Jorge Luís Borges, na Biblioteca Nacional.
    Por exemplo, a de Maria Guerreiro.
    O momento foi irrepetível, ficou na memória de quem teve a felicidade de ali estar. Mas aqui ficam as palavras, para todos e para sempre.
    Ao lê-las, como não "reinventar" o poema , com outras histórias da emigração, as dos nossos próprios avós, ou tios, a partir de um velhinho bilhete de teatro, de uma caixa de música de Nª Sª de Lourdes, de um apito de caça, de uma comprida luva de cetim, apertada com minúsculos botões forrados, de uma fivela de metal burilado, de uma colecção de postais de namorados, que atravessaram o oceano Atlântico, no início de novecentos...

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  2. Espaços vazios, espaços de conservação ou de renovação, de coisas e de memórias, como símbolos das opções de vida das mulheres migrantes, no seu movimento, no seu devir.
    Sentimentos de perda e de recuperação, que a emigração arrasta consigo, fatalmente.
    Tão bem transpostos no texto, que parece que vemos imagens, como se o estivessemos a passar para a tela de um quadro, ou para um filme.

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