segunda-feira, 1 de junho de 2020

JÚLIA NÉRY


Júlia Nery
Júlia Guilhermina do Nascimento Lopes, nascida em Lisboa, mas de raízes beirãs.

Pediram-me a biografia. Como contar-me nas histórias de que sou feita? Pedi socorro à memória. De mão dada com ela, cheguei ao Largo de Sapadores, entrei por uma porta quase tão larga como a da igreja, e logo me reconheci nos caracóis longos de uma garotinha que subia degraus a dois e dois, com a mesma alegria apressada de quem tem a certeza de ir encontrar um tesouro. Teria eu então compreendido que, ao entrar na minha primeira escola, começava a busca do saber, essa chave mágica que é capaz de abrir todas as portas?
Ainda por imagens, desci a Vale de Santo António, encontrando pessoas, situações e emoções, que emergiam de variadas recordações. Metida numa espécie de bolha de felicidade, parei num quintal, onde me vi a recitar a tabuada e depois a contar histórias a uma amiguinha doente, deitada num tabuleiro de madeira. Assim, começara eu a partilhar o que aprendia e também como inventora de histórias, dependente da imaginação para poder efabulá-las. Ignorante de quaisquer teorias e técnicas literárias, fiz dos muitos livros que lia e da minha janela de terceiro andar as fontes da inspiração. Deste observatório sobre a rua de um bairro operário, recolhi material para criar personagens que esperariam anos para “viverem” nos meus romances, especialmente as que viriam a emigrar. Ainda hoje, quando os releio, as reconheço e situo.
Na evocação de pessoas do meu bairro, surgiu a mais inesquecível: a dona da Papelaria Zequinha. Ela deixava-me ficar o tempo que eu quisesse a folhear livros. E senti o cheiro quente do papel, o tlim tlim da caixa registadora, a voz macia da senhora e a pressão do seu abraço, depois de  lhe ler a primeira história que escrevi. Eis-me ali, corada de alegria e de vaidade. Assim me encontrei comigo, no século passado, numa rua do bairro da Graça, no momento em que julguei descobrir que o meu dom era a Escrita. Passados tantos anos, feitas muitas leituras, reflexões, escritas, continuo a interrogar-me: será que tinha mesmo o “dom”?
Ainda com doze anos, comecei a publicar regularmente no Suplemento República dos Miúdos do Jornal República, iniciando-me com O Lar da Felicidade, uma história de muitas peripécias de dois meninos órfãos. Também publiquei uma crónica, Lisboa; e uma narrativa dramática, O Jardim da Felicidade, representada depois no teatrinho da paróquia.
Nesta mesma época, participei regularmente num programa de Mário Lisboa, no Clube Radiofónico de Portugal.
Porque evoco estas memórias, ao contar-me? Percebi que há acasos premonitórios na juventude, levando-nos pela mão aos caminhos principais de nossas vidas. Também na minha assim foi.
Em 1960, obtive o Diplôme d’Études Françaises da Universidade de Poitiers.
Em 1964 a Licenciatura em Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa.
Em 1974, concluí o Estágio Profissional como docente.

Durante alguns anos, o meu gosto de efabular narrativas passou a satisfazer-se em entreter, com histórias de prazer, proveito e exemplo, os meus quatro filhos, e todo o meu empenho na Escrita se esgotara nos trabalhos para aprendizagem.
No ENSINO, desempenhei várias funções: docente, Presidente de Conselho Diretivo e de Conselho Pedagógico de Escola Secundária, Formadora de professores (Projeto Foco) e dinamizei Oficinas de Escrita para jovens e professores.
Para aprofundar a formação no domínio da Expressão Dramática, enquanto adjuvante da aprendizagem, frequentei os Cursos de Dramaturgia (IFICT), Escrita de teatro (WolKer Ludwig e Lutz Hubner), de Monitores de Expressão Dramática (João Mota) na Fundação Calouste Gulbenkian.
Como Bolseira do Ministério da Educação, do Governo Francês e do Conselho da Europa, desenvolvi vários trabalhos e projetos de investigação que visam o conhecimento integrado nos domínios da Didática, da Pedagogia e da Criatividade e um projeto de prática da Expressão dramática na aprendizagem de Português, aplicado a uma turma-caso.
Colaborei com o Teatro Experimental de Cascais, dando apoio dramatúrgico a espetáculos vocacionados para público escolar e com o Grupo Nós e Vozes, fazendo a dramaturgia de Flauta de Pã, (Teatro da Trindade)
Depois, veio a revolução, e com ela as responsabilidades de me cumprir também como cidadã.
Eleita como Deputada à Assembleia Municipal de Cascais, exerci os mandatos de 1976 a 1985, tendo exercido funções de Secretária da Assembleia.
Eleita como Presidente do Conselho Diretivo e do Conselho Pedagógico (por inerência) da Escola Secundária de Cascais, desempenhei o cargo de 1982 a 1985.
Membro do Instituto de Cultura e Estudos Sociais de Cascais (até 2011).
Membro do Conselho de Fundadores da Fundação D. Luís.
Membro do Conselho Editorial da Revista Boca do Inferno.
Medalha de Mérito Municipal, 1994.
Membro dos Corpos Gerentes da Associação Portuguesa de Escritores (1991 a 1997), tendo feito parte da Comissão Executiva da Organização do III Congresso de Escritores Portugueses e da Comissão Organizadora do 1ºe do 2º Simposium de Moçambique – Língua Portuguesa- Diálogo entre Culturas.
Membro do Conselho de Fundadores da Fundação D. Luís.
Estivera a minha Escrita em pousio. Chegou o tão esperado tempo de semear emoções, dúvidas, perguntas, sonhos, inquietações, através da palavra impressa, mas tal como em menina, nem sempre conseguia o equilíbrio entre o tempo de entrega a ensinar e a escrever. Por meu bem, estas duas atividades se conjugam à vezes, resultando num ato criativo, o que foi o caso de algumas das minhas obras, como o primeiro romance.  A sua trama nasceu de um contido sentimento de revolta, quando, estando eu em Vichy (1980) como Bolseira,( Curso de aperfeiçoamento da Didática das Línguas), fui assistir a uma sessão de esclarecimento de Monsieur Le Pen, que proferiu um violento discurso contra os emigrantes. Concentrada no esforço de ficar calada a reprimir um forte sentimento de revolta, uma figura vinda da memória ditou-me a resposta àquele discurso. A figura era a da minha avó, que se afastara de mim há mais de trinta anos, a caminho de França. Com a sua ausência, os seus desabafos e relatos, eu intuí o sentir de uma mulher migrante. Naquela noite comecei a escrever o romance. Minha avó o “encomendara”. Nela me inspirei para criar a protagonista Maria Menina.  Pouca terra…poucá terra, entraria no mundo dos leitores em 1984, por onde desde aí, tem andado a minha FICÇÃO.
Obra publicada:
O Cônsul (rom.) Publ. D. Quixote, Lisboa, 1991; Ed Círculo de Leitores,1993; Ed. Âncora, 2017
La Résolution de Bordeaux , Ed. Le Mascaret, Bordeaux, 1992
Der Konsul, Ed. Epoca, Zurique, 1997 e Edit. Piper, 1999
Valéria, Valéria, Ed.Notícias, Lisboa,1998;
Infantas de Portugal, ED. Notícias, Lisboa,1998
WWW.morte.com (contos), Ed. Notícias, Lisboa, 2000
O Segredo Perdido - Lisboa, terramoto de 1755, ed. Bertrand, Lisboa, 2005
Crónica de Brites, Sextante Editora, Lisboa, 2008
Da Índia, com amor, Sextante Editora, Lisboa, 2012 (A mulher portuguesa migrante no século XVI)
Ei-los que partem, Sextante Editora, Lisboa, 2017 (A mulher portuguesa migrante no século XXI)
TEATRO
Na Casa da Língua Moram as Palavras, Ed. Asa, Porto, 1992, levado à cena com o título Viagem à Casa da Língua, Centro Cultural de Cascais, 2000.
O Plantador de Naus a Haver, Ed. Asa, Porto, 1994 – Prémio Eça de Queirós, 1994
Do Forno 14 ao Sud- Express com Autos e Foral (1996), levado à cena pelo grupo Pais Miranda com encenação de Francisco Keil do Amaral.
Aquário na Gaiola, Sextante Editora, Lisboa, 2008, levado à cena pelo Teatro Experimental de Cascais com encenação de Carlos Avilez.
Para completar a semelhança entre o meu percurso juvenil com o da vida adulta, também a
Colaboração na Rádio: na década de oitenta, como autora de crónicas - Programa O Linho e Seda (RDP, Antena 1) e de textos para Teatro Radiofónico (os meus contos inéditos Lubélia e Morte Computorizada foram adaptados).

1-      Algumas considerações sobre o seu modo de ver e de trabalhar para os objetivos fundamentais da AMM, fazendo referência à colaboração já dada a iniciativas da AMM e/ou a novas propostas.

Faço há muito pouco tempo parte da AMM, pelo que a minha colaboração não tem ido além da presença em iniciativas e reuniões. Mas foram (são) exatamente os objetivos fundamentais da AMM que me chamaram cá, e aonde cheguei, por contágio do muito entusiasmo da Dra Aida Batista.
Nas iniciativas de temática Mulher Migrante em que participei, destaco V Colóquio Internacional As Mulheres Portuguesas na Diáspora: em França e no mundo, Universidade de Sorbonne - Nanterre, 2011; A vez e a Voz da Mulher em Portugal e na Diáspora, Universidade dos Açores, 2013, Encontro Mundial Mulheres da Diáspora, Lisboa2013, ampliei a minha perspetiva sobre a condição da mulher migrante e compreendi a importância da AMM como impulsionadora de pesquisas, publicações, “encontros” de estudiosos e interessados no fenómeno migratório, sem distinção de raça ou nacionalidade, que permitem enfoques diversos e sempre atualizados sobre a mulher migrante. Esta transversalidade é a maior força da AMM e garante de uma continuidade reconhecidamente útil.

2-      Como vê possíveis aplicações concretas das suas linhas de investigação e/ou planos de ação no domínio das Migrações e da Diáspora, com enfoque especial no feminino?
3-       
Após a publicação de Pouca terra…poucá terra (1984), tenho sido frequentemente convidada a participar, com comunicações ou apresentações de meus romances, em várias iniciativas cujo tema seja a mulher portuguesa migrante
Reconheço hoje que se não fossem as múltiplas e variadas reflexões, abordagens e informações, recolhidas nesses “encontros”, eu não teria sido motivada a procurar entender essa realidade da nossa História, trazendo à ficção personagens da muito específica migração da mulher portuguesa no século XVI, no século XX e da totalmente diferente mulher migrante do século XXI.
Cito estas experiências pessoais, para apoiar a minha opinião de que a mulher migrante poderá revelar-se mais profundamente através da sua representação na arte. Qualquer abordagem artística poderá dar forma, luz, sombras, cores, contrastes, voz, aos retratos que dela nos vão dando os estudiosos.
As linhas de investigação que segui podem ser postas ao serviço da AMM, para qualquer ação que entenda estar de acordo com os seus objetivos, bem como a minha colaboração em iniciativas nas quais a Direção da AMM entenda que eu possa ser útil.
                                                                       Março,2020


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