Júlia Nery
Júlia
Guilhermina do Nascimento Lopes, nascida em Lisboa, mas de raízes beirãs.
Pediram-me
a biografia. Como contar-me nas histórias de que sou feita? Pedi socorro
à memória. De mão dada com ela, cheguei ao Largo de Sapadores,
entrei por uma porta quase tão larga como a da igreja, e logo me reconheci nos
caracóis longos de uma garotinha que subia degraus a dois e dois, com a mesma
alegria apressada de quem tem a certeza de ir encontrar um tesouro. Teria eu então
compreendido que, ao entrar na minha primeira escola, começava a busca do
saber, essa chave mágica que é capaz de abrir todas as portas?
Ainda por imagens, desci a Vale de Santo
António, encontrando pessoas, situações e emoções, que emergiam de
variadas recordações. Metida numa espécie de bolha de felicidade, parei
num quintal, onde me vi a recitar a tabuada e depois a contar histórias a uma
amiguinha doente, deitada num tabuleiro de madeira. Assim, começara eu a partilhar o que aprendia e também como inventora de
histórias, dependente da imaginação para poder efabulá-las. Ignorante de
quaisquer teorias e técnicas literárias, fiz dos muitos livros que lia e da
minha janela de terceiro andar as fontes da inspiração. Deste observatório
sobre a rua de um bairro operário, recolhi material para criar personagens que
esperariam anos para “viverem” nos meus romances, especialmente as que viriam a
emigrar. Ainda hoje, quando os releio, as reconheço e situo.
Na evocação de pessoas do meu bairro,
surgiu a mais inesquecível: a dona da Papelaria Zequinha. Ela deixava-me ficar
o tempo que eu quisesse a folhear livros. E senti o cheiro quente do papel, o
tlim tlim da caixa registadora, a voz macia da senhora e a pressão do seu
abraço, depois de lhe ler a primeira
história que escrevi. Eis-me ali, corada de alegria e de vaidade. Assim me
encontrei comigo, no século passado, numa rua do bairro da Graça, no momento em
que julguei descobrir que o meu dom era a Escrita. Passados tantos anos, feitas
muitas leituras, reflexões, escritas, continuo a interrogar-me: será que tinha
mesmo o “dom”?
Ainda com doze
anos, comecei a publicar regularmente no Suplemento República dos Miúdos do
Jornal República, iniciando-me com O Lar da Felicidade, uma história de
muitas peripécias de dois meninos órfãos. Também publiquei uma crónica, Lisboa; e uma narrativa dramática, O
Jardim da Felicidade, representada depois no teatrinho da paróquia.
Nesta mesma época,
participei regularmente num programa de Mário Lisboa, no Clube Radiofónico de
Portugal.
Porque evoco
estas memórias, ao contar-me? Percebi que há acasos premonitórios na juventude,
levando-nos pela mão aos caminhos principais de nossas vidas. Também na minha
assim foi.
Em 1960, obtive o Diplôme d’Études Françaises
da Universidade de Poitiers.
Em 1964 a Licenciatura em Filologia Românica da
Faculdade de Letras de Lisboa.
Em 1974, concluí o Estágio Profissional como docente.
Durante alguns
anos, o meu gosto de efabular narrativas passou a satisfazer-se em entreter,
com histórias de prazer, proveito e exemplo, os meus quatro filhos, e todo o
meu empenho na Escrita se esgotara nos trabalhos para aprendizagem.
No ENSINO,
desempenhei várias funções: docente, Presidente de Conselho Diretivo e de
Conselho Pedagógico de Escola Secundária, Formadora de professores (Projeto
Foco) e dinamizei Oficinas de Escrita para jovens e professores.
Para aprofundar a formação no domínio da Expressão
Dramática, enquanto adjuvante da aprendizagem, frequentei os Cursos de
Dramaturgia (IFICT), Escrita de teatro (WolKer Ludwig e Lutz Hubner), de
Monitores de Expressão Dramática (João Mota) na Fundação Calouste Gulbenkian.
Como Bolseira
do Ministério da Educação, do Governo Francês e do Conselho da Europa,
desenvolvi vários trabalhos e projetos de investigação que visam o
conhecimento integrado nos domínios da Didática, da Pedagogia e da Criatividade
e um projeto de prática da Expressão dramática na aprendizagem de Português,
aplicado a uma turma-caso.
Colaborei com o
Teatro Experimental de Cascais, dando apoio dramatúrgico a espetáculos
vocacionados para público escolar e com o Grupo
Nós e Vozes, fazendo a dramaturgia de Flauta de Pã, (Teatro da Trindade)
Depois, veio a
revolução, e com ela as responsabilidades de me cumprir também como cidadã.
Eleita como
Deputada à Assembleia Municipal de Cascais, exerci os mandatos de 1976 a 1985,
tendo exercido funções de Secretária da Assembleia.
Eleita como Presidente
do Conselho Diretivo e do Conselho Pedagógico (por inerência) da Escola
Secundária de Cascais, desempenhei o cargo de 1982 a 1985.
Membro do Instituto de Cultura e Estudos Sociais de
Cascais (até 2011).
Membro do Conselho de Fundadores da Fundação D. Luís.
Membro do
Conselho Editorial da Revista Boca do Inferno.
Medalha de Mérito Municipal, 1994.
Membro dos
Corpos Gerentes da Associação Portuguesa de Escritores (1991 a 1997), tendo
feito parte da Comissão Executiva da Organização do III Congresso de Escritores
Portugueses e da Comissão Organizadora do 1ºe do 2º Simposium de Moçambique – Língua
Portuguesa- Diálogo entre Culturas.
Membro do Conselho de Fundadores da Fundação D. Luís.
Estivera a minha
Escrita em pousio. Chegou o tão esperado tempo de semear emoções, dúvidas,
perguntas, sonhos, inquietações, através da palavra impressa, mas tal como em
menina, nem sempre conseguia o equilíbrio entre o tempo de entrega a ensinar e
a escrever. Por meu bem, estas duas atividades se conjugam à vezes, resultando
num ato criativo, o que foi o caso de algumas das minhas obras, como o primeiro
romance. A sua trama nasceu de um contido
sentimento de revolta, quando, estando eu em Vichy (1980) como Bolseira,(
Curso de aperfeiçoamento da Didática das Línguas), fui assistir a
uma sessão de esclarecimento de Monsieur Le Pen, que proferiu um violento
discurso contra os emigrantes. Concentrada no esforço de ficar calada a reprimir
um forte sentimento de revolta, uma figura vinda da memória ditou-me a resposta
àquele discurso. A figura era a da minha avó, que se afastara de mim há mais de
trinta anos, a caminho de França. Com a sua ausência, os seus desabafos e
relatos, eu intuí o sentir de uma mulher migrante. Naquela noite comecei a
escrever o romance. Minha avó o “encomendara”. Nela me inspirei para criar a
protagonista Maria Menina. Pouca
terra…poucá terra, entraria no mundo dos leitores em 1984, por onde desde
aí, tem andado a minha FICÇÃO.
Obra
publicada:
O
Cônsul (rom.) Publ. D. Quixote, Lisboa, 1991; Ed Círculo
de Leitores,1993; Ed. Âncora, 2017
La Résolution de Bordeaux , Ed. Le Mascaret, Bordeaux, 1992
Der Konsul, Ed. Epoca, Zurique, 1997 e Edit.
Piper, 1999
Valéria,
Valéria, Ed.Notícias,
Lisboa,1998;
Infantas de Portugal, ED. Notícias, Lisboa,1998
WWW.morte.com (contos), Ed.
Notícias, Lisboa, 2000
O Segredo Perdido -
Lisboa, terramoto de 1755, ed. Bertrand, Lisboa,
2005
Crónica
de Brites,
Sextante
Editora, Lisboa, 2008
Da
Índia, com amor,
Sextante
Editora, Lisboa, 2012 (A mulher portuguesa migrante no século XVI)
Ei-los
que partem,
Sextante
Editora, Lisboa, 2017 (A mulher portuguesa migrante no século XXI)
TEATRO
Na Casa da Língua Moram as Palavras, Ed. Asa, Porto, 1992, levado à cena com o título Viagem
à Casa da Língua, Centro Cultural de Cascais, 2000.
O Plantador de Naus a Haver, Ed. Asa, Porto, 1994 – Prémio Eça de Queirós,
1994
Do Forno 14 ao Sud- Express com Autos e Foral (1996), levado à cena pelo grupo Pais Miranda com encenação de
Francisco Keil do Amaral.
Aquário na Gaiola, Sextante
Editora, Lisboa, 2008, levado à cena
pelo Teatro Experimental de Cascais com encenação de Carlos Avilez.
Para completar a
semelhança entre o meu percurso juvenil com o da vida adulta, também a
Colaboração na
Rádio: na década de oitenta, como
autora de crónicas - Programa O Linho e Seda
(RDP, Antena 1) e de textos para Teatro Radiofónico (os meus contos
inéditos Lubélia e Morte Computorizada foram adaptados).
1- Algumas considerações sobre
o seu modo de ver e de trabalhar para os objetivos fundamentais da AMM,
fazendo referência à colaboração
já dada a iniciativas da AMM e/ou a novas propostas.
Faço há muito
pouco tempo parte da AMM, pelo que a minha colaboração não tem ido além da presença
em iniciativas e reuniões. Mas foram (são) exatamente os objetivos
fundamentais da AMM que me chamaram cá, e aonde cheguei, por contágio do muito
entusiasmo da Dra Aida Batista.
Nas iniciativas de
temática Mulher Migrante em que participei, destaco V Colóquio Internacional
As Mulheres Portuguesas na Diáspora: em França e no mundo, Universidade de
Sorbonne - Nanterre, 2011; A vez e a Voz da Mulher em Portugal e na Diáspora,
Universidade dos Açores, 2013, Encontro Mundial Mulheres da Diáspora,
Lisboa2013, ampliei a minha perspetiva sobre a condição da mulher migrante
e compreendi a importância da AMM como impulsionadora de pesquisas,
publicações, “encontros” de estudiosos e interessados no fenómeno migratório,
sem distinção de raça ou nacionalidade, que permitem enfoques diversos e sempre
atualizados sobre a mulher migrante. Esta transversalidade é a maior força da
AMM e garante de uma continuidade reconhecidamente útil.
2- Como vê possíveis
aplicações concretas das suas linhas de investigação e/ou planos de ação no
domínio das Migrações e da Diáspora, com enfoque especial no feminino?
3-
Após a
publicação de Pouca terra…poucá terra (1984), tenho sido
frequentemente convidada a participar, com comunicações ou apresentações de
meus romances, em várias iniciativas cujo tema seja a mulher portuguesa
migrante
Reconheço hoje
que se não fossem as múltiplas e variadas reflexões, abordagens e informações,
recolhidas nesses “encontros”, eu não teria sido motivada a procurar entender
essa realidade da nossa História, trazendo à ficção personagens da muito
específica migração da mulher portuguesa no século XVI, no século XX e da
totalmente diferente mulher migrante do século XXI.
Cito estas
experiências pessoais, para apoiar a minha opinião de que a mulher migrante
poderá revelar-se mais profundamente através da sua representação na arte.
Qualquer abordagem artística poderá dar forma, luz, sombras, cores, contrastes,
voz, aos retratos que dela nos vão dando os estudiosos.
As linhas de
investigação que segui podem ser postas ao serviço da AMM, para qualquer ação
que entenda estar de acordo com os seus objetivos, bem como a minha colaboração
em iniciativas nas quais a Direção da AMM entenda que eu possa ser útil.
Março,2020
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