domingo, 26 de abril de 2015

Prof Doutora Maria Benedicta Monteiro MARIA LAMAS:Migrações para a Liberdade


Maria Lamas: Migrações para a liberdade
Maria Benedicta Vassalo Pereira Bastos Monteiro (ISCTE)
40 anos de migrações em liberdade é um título que por si só nos
convoca para o antes e para o depois do dia 25 de Abril: para o modo
como muitos portugueses se envolveram na defesa dessa liberdade tão
longamente negada, como para o modo como a conquista da
liberdade se traduziu nos múltiplos quotidianos da Democracia.
Defendo hoje a ideia de que as mulheres do nosso país, apesar do
enorme caminho andado desde que Portugal se tornou numa
Democracia, em 1974, continuam a precisar de mais atenção, de mais
cuidados, de mais respeito. Ou seja, continuam a merecer uma
tradução mais sólida e persistente das regras formais da Democracia em
formas que as libertem de todas as velhas servidões do
passado.
Merecem mais atenção, mais cuidado e mais respeito. Por parte de nós,
cidadãos. Por parte das instituições de governo da nação. Muitas
vezes por parte delas próprias.
Assim, lembrarei aqui como Maria Lamas, essa mulher torrejana (Torres
Novas, 6 de Outubro de 1893) dedicou a sua vida, que
inicialmente parecia burguesamente pacata, a grandes causas do mundo a
paz mundial ameaçada, a liberdade política e a educação das
mulheres. Para o fazer, cedo teve que se incluir no grupo das mulheres
migrantes, e como elas foi primeiro vigiada e perseguida no seu
país, nomeadamente desde 1945, e depois empurrada para outras
paragens, até poder reentrar em 1970 num Portugal já Marcelista,
quebrado por uma guerra colonial sem fim à vista, empobrecido e ignorante.
Agradeço o convite da Associação Mulher Migrante, e espero poder
contribuir para o que Maria Lamas esperaria também hoje se aqui
estivesse: celebrar os 40 anos da revolução de Abril, celebrar 40 anos
de liberdade cívica e política. E com essa celebração tomar
consciência da situação actual das Mulheres, como primeiro passo para
querer intervir nela, para de novo criar as condições para a
mudança necessária.
Foi a isso que dedicou a sua vida.
1. A educação das mulheres
A preocupação com a educação das mulheres chegou muito cedo na vida de
Maria da Conceição Vassallo e Silva, vinda da sua própria
experiência como jovem mulher apaixonada aos 17 anos, casada,
divorciada e separada em dois casamentos em pouco mais de 10
anos, sem armas para afrontar a vida, sem uma formação profissional e
com três filhas a seu cargo.
Essa preocupação veio também das suas intensas leituras, onde pôde
saber que noutras partes do mundo muitas mulheres estudavam,
trabalhavam, votavam, ganhavam a sua autonomia e o respeito da
sociedade: 'Procurava nos livros o que as pessoas com quem vivia me
não diziam da vida' (Lamas, M., 1949, O despertar de Sílvia; in As
Quatro Estações, vol.1, p. 18).
E veio finalmente da fase inicial da sua vida profissional, como
jornalista e como editora. Aí proliferam os contactos e colaboração
com
Escritores, Editoras e Jornalistas, que alargaram as suas
oportunidades de afirmação, como escritora e como militante cívica e
política: 'O
jornalismo foi a minha grande escola. Foi ele que me fez tomar
consciência da possibilidade de me exprimir escrevendo, dando-me
confiança para o fazer' diria Maria Lamas mais tarde.
O seu trabalho para a educação das mulheres, para a maternidade, para
a profissionalização e o respeito por si próprias, e ainda para a
intervenção activa na vida cívica e política, traduziu-se
progressivamente em reuniões, organização de exposições, escrita de
livros e de
artigos em jornais e revistas, convites a mulheres portuguesas e
estrangeiras para exporem os seus trabalhos.
De que falamos concretamente? Falamos de romances autobiográficos,
como 'O Caminho Luminoso', (1927) , 'Para Além do Amor'
(1935) ou a 'A Ilha Verde' (1938), onde se entrecruzam o mito do amor
romântico com pinceladas neo-realistas, em que a figura central
da mulher é retratada de forma polémica, buscando amores virginais e
simultaneamente afrontando relações amorosas difíceis e
heterodoxas: '...entre o sonho mais puro e a realidade mais cruel'.
(Ferreira, E. M., 2004, Cartas de Maria Lamas a Eugénio Ferreira, pp.
30-31. Porto, Companhia das Letras).
Falamos da direcção, durante 20 anos, da revista 'Modas & Bordados',
suplemento do jornal 'O Século'. Neste período, entre 1929 e 1947,
a sua profissão central é o jornalismo orientado para a vida e a
educação das mulheres.
Durante este longo período desenvolve a sua maturidade profissional e
cívica: cerca-se de colaboradores, cria uma coluna de correio
com as leitoras, publica notícias, obras e fotografias de mulheres
portuguesas e estrangeiras que se notabilizam como escritoras,
cientistas, artistas, empresárias, modelos e artesãs, propõe e ensina
actividades culturais e desportivas, a par de actividades
domésticas de saúde, alimentação, moda, lazer e de educação dos filhos.
É ao longo destes anos de direcção da Revista que toma consciência da
pobreza física e educativa e do sofrimento calado em que muitas
mulheres vivem, do seu estatuto cívico de menores (o decreto que
concede o voto às mulheres, desde que tenham estudos secundários,
só é aprovado por Salazar em 1931), ignorando alternativas, amarradas
a um destino que uma forte simbiose entre o fascismo e o
catolicismo foram cristalizando em instituições, como a 'Obra das
Mães', ou a Mocidade Portuguesa Feminina; e onde a função social da
mulheres se fechava no círculo da organização da casa, da educação dos
filhos, e eventualmente de práticas de caridade e de
assistência social.
É para sacudir as mulheres desse torpor sem esperança que multiplica
os contactos e as iniciativas: cria novas revistas para crianças e
jovens, como 'A Joaninha', organiza exposições e eventos, de carácter
científico, literário e artístico, como o Ciclo de Conferências sobre
'As mulheres', que organiza com Manuela Porto, Sara Beirão e outras,
ou a exposição dos Tapetes de Arraiolos feitos por mulheres da
'Cadeia das Mónicas'.
No rescaldo da II Guerra Mundial e do desenvolvimento na Europa de
movimentos femininos de reconhecimento do papel das Mulheres
na resistência ao domínio dos países do Eixo, uma iniciativa de Maria
Lamas viria a adquirir um significado e um impacto que mudou a
sua trajectória profissional e a envolveu necessariamente na
resistência ao fascismo em Portugal. Tratou-se da 'Exposição de Livros
Escritos por Mulheres', que organizou em 1947, na Sociedade Nacional
de Belas Artes, em Lisboa, enquanto presidente do Conselho
Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), cujo catálogo incluía mais
de 2000 títulos de escritoras de 28 países da Europa, Ásia e
Américas. A exposição abriu no dia 4 de Janeiro, com uma conferência
proferida por Maria Lamas, explicando os objectivos da exposição
e do conselho a que presidia.
O encerramento da actividade do CNMP pelo Governo Civil de Lisboa, na
sequência desta exposição, constituiu o ponto de ruptura de
Maria Lamas com a Censura política pela ameaça directa à sua liberdade
profissional. Mas foi também o ponto de partida para a sua obra
de maior fôlego e que a notabilizou, não só nos meios académico e
literário, mas no meio político: 'As Mulheres do meu País'.
A publicação de 'As Mulheres do meu País', 'nascida da urgência e da
ofensa', foi o culminar de um enorme esforço e determinação para
superar, quer as dificuldades económicas resultantes da sua saída
forçada de Directora da Revista 'Modas e Bordados: Vida Feminina' do
jornal 'O Século', quer os recursos logísticos e de adaptação cultural
que aquele trabalho etnográfico de amplitude nacional envolvia,
quer a a ameaça constante da censura do regime. Alguns chamaram-lhe
'jornalismo de iniciativa', ou 'jornalismo-reportagem', o
jornalismo que consegue trazer para a luz do dia as vidas invisíveis
ou ocultas das 'minorias' grupos humanos subordinados, com pouco
controlo sobre o seu destino - normalmente ignoradas e estigmatizadas
pelo grupo dominante na sociedade. Neste caso, as mulheres.
O grande empreendimento em que se tornou a publicação de 'As Mulheres
do meu País' exigiu de Maria Lamas que se tornasse uma
migrante no seu próprio país. Percorreu todos os seus distritos,
continentais e insulares, não em busca dos protótipos de figuras
femininas e de festas folclóricas que então o regime divulgava como
símbolo do nacionalismo florescente, mas procurando registar os
múltiplos quotidianos das Mulheres, nomeadamente no trabalho rural e
urbano. O texto e as fotografias com que Maria Lamas registou o
que ouviu e observou ao longo de 2 anos, (muitas das fotografias são
hoje consideradas obras relevantes e representativas do neo-
realismo português), vistos hoje, à distância de 70 anos, tornam mais
saliente a sua figura determinada, consciente da responsabilidade
de representar as Mulheres portuguesas, e de com elas enfrentar a
ideologia da mulher doméstica, humilde e resignada que o regime
impunha.
2. A paz mundial e a liberdade política.
Chegamos então a Maria Lamas, Mulher lutadora, pelas mulheres, pelos
direitos cívicos, contra o regime da ditadura e pela Paz. E
também, de novo, mulher migrante.
Maria Lamas torna-se consciente do progressivo isolamento de Portugal
em relação às democracias europeias, e dedica a maior parte
dos anos a partir do pós-guerra a defender as causas da liberdade
política, dos direitos das mulheres e da paz no mundo.
Aceita fazer conferências, escrever artigos em Jornais, adere a
Associações para a paz, nacionais e estrangeiras, representa Portugal
em
conferências internacionais, faz crónicas para a 'Rádio Moscovo' (sob
o pseudónimo de Helena Torres).
Em 1946, por exemplo, representa Portugal, enquanto Presidente do
CNMP, no I Congresso Mundial das Mulheres, que reuniu mulheres
da Resistência, ex-detidas em campos de concentração nazis, como foi o
caso de Eugénie Cotton.
Volta a representar Portugal em 1948, no II Congresso da 'Federação
Democrática Internacional das Mulheres ́ (FDIM), entretanto criada.
Vêmo-la depois, em 1949, quando sai da prisão, ao lado de outros
ex-presos políticos como Pinto Rodrigues, Rui Luís Gomes, Virgínia
Moura, José Morgado, Albertino de Macedo, Pinto Gonçalves e António
Areosa Feio, todos signatários de um 'abaixo-assinado' contra a
instalação da Base Americana das Lages nos Açores.
Em 1950 faz a Conferência 'A paz e a vida' em Lisboa, no Museu João de
Deus, e uma outra no Porto, no 15o aniversário da Associação
Feminina para a Paz, onde afirma: 'A batalha da vida é a batalha da
Paz'. É de novo presa meses depois, em 18 de Julho, por sentença do
Tribunal, sendo libertada em Janeiro de 51.
Em 1952 participa no Congresso dos Povos para a Paz, em Viena, e em
1953, está de novo a representar Portugal no III Congresso Mundial
das Mulheres em Copenhaga.
Em 1962 participa, em Moscovo, na 'Conferência sobre Desarmamento
Geral', o que comprometeu definitivamente a sua segurança em
Portugal. No regresso ao país, face à ameaça de prisão política pela
PIDE, a decisão está tomada: exilar-se-á em Paris, onde colaborará
com outros expatriados na luta contra a Ditadura.
Aí viveu, mulher migrante no Quartier Latin, Rue Cujas, no Grand Hotel
Saint Michel onde recebia ininterruptamente membros das
oposições ao regime - do grupo de Argel aos membros do Partido
Comunista na clandestinidade e aos desertores das guerras coloniais de
Portugal em África - jovens emigrados ao desamparo, amigos de Lisboa e
pessoas sozinhas a precisar de uma palavra.
Lembro-me de ver entrar Jorge Reis, António José Saraiva, Maria Nobre
Franco, José Carlos Ferreira de Almeida, João Freire, a Miriam e a
Teresa Rita Lopes, Helena Pato e Mário Neves, Eugénia Pereira de
Moura, Helena Neves e Maria Antónia Palla. Procuravam ajuda, mas
também lhe escreviam cartas e lhe traziam notícias, coisas suas, como
presentes: livros, pintura, gravura desenho, escultura,
fotografias, roupa, alimentos. Passavam, ficavam, partiam. Às
centenas. Iam passear com ela para o Jardim do Luxemburgo. Era a 'Avó
Maria ́. Que continuava a trabalhar nos intervalos nos seus projectos,
na sua correspondência e nas suas traduções, na pequena mesa
que tinha no quarto, dedilhando a máquina de escrever com estojo
verde, qua ainda hoje guardo comigo. Quem não leu, por exemplo, a
sua belíssima tradução de ́As Memórias de Adriano', de Marguerite Yourcenar?
Nós ficávamos também no Hotel. Em 1967 tínhamos ido frequentar,
através da Pragma, Associação Cultural, em Lisboa (que a PIDE viria
a encerrar algum tempo depois), primeiro um curso de formação em
Animação Cultural, e no ano seguinte, em pleno Junho quente de
1968, uma formação em Dinâmica de Grupos, ambos promovidos para
sindicalistas da CFDT. Mas nos intervalos saíamos com a Avó
Maria Lamas, esfomeados de bons filmes, de teatro, jornais e livros a
que não podíamos ter acesso em Portugal: Bunuel, Bergman,
Nicholas Ray, Fellini, Jean Cocteau, Elia Kazan, Fritz Lang, Murnau,
Claudel, Genet. Foi um deslumbramento que a companhia da Avó
Maria Lamas enriquecia com reflexões e comentários, de tal modo que os
seus 75 anos não era um peso, mas uma energia inesgotável e
que sempre nos surpreendia.
Em Paris, Maria Lamas continuou a sua actividade política. Em 1963,
estava na Mesa da Presidência do V Congresso Mundial das
Mulheres, em Moscovo, que reuniu 1400 delegadas de todo o mundo. Ao
seu lado, estavam Dolores Ibarrurri, a Passionária, Eugénie
Cotton, Marie Claude Couturier, heroína da resistência francesa, Gusta
Fuchikova, resistente checoslovaca e Valentina Teereskova,
primeira mulher cosmonauta a viajar no Cosmos.
De regresso a Portugal em 1969, na 'abertura' da Primavera Marcelista,
espera-a muita actividade, e é ainda antes da Revolução que é
homenageada por outras mulheres em Portugal. Em 1973 tem 80 anos.
O seu entusiasmo com a Revolução de Abril, em 1974, trouxe-a para a
rua, a desfilar no 1o de Maio ao lado da multidão. E uma das
actividades mais importantes foi o seu papel central, de novo em favor
das mulheres portuguesas, na criação do Movimento
Democrático de Mulheres, de que foi eleita Presidente Honorária em 1975.
A sua posição de Directora da revista 'Mulheres' criada pelo Movimento
em 1978 representou, antes de mais, para Maria Lamas, o
regresso à imprensa feminina, onde a sua vida profissional começara,
na defesa da educação das Mulheres, da liberdade política e da paz
mundial.
Maria Lamas morre em Lisboa em Dezembro de 1983, dois meses depois de
completar 90 anos.
Nesta dia de evocação de 40 anos de democracia e de migrações em
liberdade, relembrar Maria Lamas, Uma Escritora Portuguesa em
Luta pelas Mulheres do seu país, quero deixar esta mensagem de que é
preciso e urgente, como ela, não baixar os braços, mas continuar
a levantar a voz, a estudar velhos e novos problemas - como o das
trajectórias e trabalhos das mulheres das novas migrações. É preciso
ir
de novo ver como vivem e pensam as mulheres e os homens do nosso país.
Um trabalho já começado em dissertações de Mestrado, Teses de
Doutoramento, levantamentos estatísticos sistemáticos das condições
de vida dos portugueses, que espera pela nossa colaboração.


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