quinta-feira, 12 de julho de 2012

BLANCHE DE BONNEVAL SOBRE MARIA ARCHER


DONA MARIA ARCHER

Fico muito comovida em falar em Dona Mariapois muito gostava da senhora e como já disse,
foi um grande privilégio conhecê-la. Conversei com minha irmã mais velha, Maria Jorge a
respeito,que me deu vários detalhes sobre ela e corrigiu também algumas memórias erradas
que tinha. Por exemplo, Dona Maria não veio morar conosco no final dos anos 50 como
pensava, mas no começo dos anos 60, quando eu tinha por volta de 13 anos (nasci em 1949). E
a família toda se apegou muito a ela.

1. O que impressionava era a sua cultura e vivência e quando ela não estava conosco dando-
nos educação, ela passava o dia conversando com o nosso velho tio Antonio de Almeida
Correa, que era um tio solteiro, intelectual, que falava 8 línguas, estudara sânscrito na
Sorbonne além de ter amealhado vários diplomas. O tio tinha uma cultura vastíssima e uma
biblioteca excepcional e os dois estavam sempre falando de literatura e comentavam, entre
outros, os livros dela. Ela até lhe deu de presente, a ele e aos meus pais, um conjunto dos seus
livros com dedicatória, que infelizmente não sei para onde foram parar depois de nos termos
mudado da Avenida Paulista 1804 para o Jardim América 31 em 1973.

2. Há também algumas lembranças pitorescas. Dona Maria tinha mãos de fada: colocava num
grande saco todas as peças de vestuário que as pessoas da casa não queriam mais, como
chapéus velhos da minha avó, roupas de minha mãe, bonés do meu tio, cortes ou pedaços
de fazenda etc. Depois, recortava, pintava e costurava criando apliques maravilhosos que
ela usava nas suas roupas. Lembro-me de apliques com rosas que ela costurou na minha
jaqueta que eram lindos de tão bem feitos. Também costurava os seus próprios vestidos
e estava sempre elegante. Aliás, não limitava esses dons apenas à suas roupas: também
pintava e modificava as suas bolsas e seus sapatos e dava uma importância particular à
suas sobrancelhas, que eram muito finas e que ela epilava e pintava com muito esmero.
Era portanto uma mulher industriosa, sempre ativa e faceira que passava o seu tempo livre
em conversas intelectuais, freqüentava muito encontros políticos e literários em São Paulo,
ocupava-se em escrever mas também fazer roupas e artefatos originais e muito bonitos para
ela própria.

Havia um outro fato que nos divertia muito: Dona Maria era alérgica a queijo e isso era o
motivo de grande divertimento para nós meninas, na hora das refeições. Invariavelmente
quando a comida era servida, ela olhava para o copeiro e lhe perguntava se tinha queijo. Era
claro que tanto eu quanto a minha irmã, morríamos de rir e era o olhar severo de nossa mãe
que nos fazia parar, não querendo de jeito nenhum que ela se ofendesse com nossas risadas.
Mas Dona Maria era a primeira a rir da sua eterna pergunta e das reações que causava.

Último detalhe pitoresco: ela sabia que tanto a minha irmã quanto eu detestávamos levantar
de manhã. Então todo dia, lá vinha Dona Maria às 8 horas em ponto no quarto escuro, abrir
as venezianas cantando modinhas portuguesas: “Abre a janela Maria que é dia” cantava ela,
enquanto nos duas escondíamos o rosto no travesseiro tentando dormir mais um pouco.

3. Se ela nos falava muito de sua vida em Angola e Moçambique, ela não mencionava nomes
de lugares, apenas fatos. E às vezes, falava-nos de sua família. Nunca esqueci aquela história
que nos contou a respeito de uma das suas irmãs, que ficara loucamente apaixonada e fugira

com um rapaz nadando para o mar aberto e desaparecendo da vista da família. Ficou-me o
nome de Isabel... não sei se estou a confundir com outra coisa. Sempre nos falava de paisagens
de praia e de cenas em Angola e Moçambique e dava para sentir o quanto sentia saudades
destes dois países mais particularmente. Mas ela vira que eu era particularmente interessada
no que ela falava a este respeito e então, não se privava de me falar sobre a Africa e as suas
maravilhas. Eu tentava imaginar o que ela contava e ficava cada vez com mais vontade de ir a
estes dois países, ver como eram, em Luanda por exemplo, a Ilha, o forte e a famosa ladeira
dos enforcados.... Ela também me dava para estudar alguns parágrafos dos seus livros e eu
ficava maravilhada com o que lia.

4. Dona Maria também tinha uma verdadeira paixão pela minha irmã mais nova, Claude, que
nasceu em 1962. Não sei o que despertara nela este sentimento tão forte que divertia a todos
na casa: ela passava parte do tempo livre dela passeando a minha irmã bêbê no carrinho pelo
jardim, falando com ela e esta correspondia com muitas risadas e gritinhos que a encantavam.
Quando ela estava com essa irmã, nada mais importava e a atenção dela ficava focada naquela
criança que ria para ela. .

5. Do ponto de vista educação, imagino agora o quanto deve ter sido desafiante para ela dar
educação a duas meninas em casa naquela época. Várias vezes, eu a ouvi discutindo com
minha mãe e dizendo-lhe que nada substituía a escola. Se não lembro bem do essencial dos
cursos particulares que recebíamos das 9h30 até as 12 horas e das 14h30 até as 16 horas
e 30, recordo-me perfeitamente que uma das tarefas finais era o relatório sobre plantas e
animais. Assim devíamos fazer pesquisa nos dicionários e outros livros que tínhamos em casa
e colocar sobre papel tudo o que conseguíamos descobrir sobre um animal ou uma planta. E
este relatório devia ser apresentado a ela. Era muito divertido e até hoje me lembro disso.

6. Quando nova, eu gostava muito de poesia e até escrevia poemas. Quando ela descobriu
isso, me deu o maior incentivo e graças aos contatos que tinha na mídia até conseguiu que
alguns dos poemas da minha autoria dos quais mais gostava, fossem publicados com uma
introdução dela muito bonita. Mas depois de sua partida, encantei-me com outras coisas
e não me dediquei mais à poesia. Gosto todavia até hoje de escrever e estou no momento
terminando as minhas memórias dos três postos que mais me ensinaram pela sua dificuldade
que são o Chade onde passei 5 anos da minha vida, o Tadjikistão onde servi 4 anos e a Rússia
onde servi 4 anos também.

7. Quando finalmente, por intervenção da minha avó paterna fomos autorizadas a ir para o
colégio, os nossos caminhos se separaram um pouco. Mas Dona Maria, continuava a ser parte
da família e vinha nos ver para almoçar em casa e conversar conosco. Lembro-me vagamente
mais tarde, dela ter ido morar em Poços de Caldas, no estado de Minas Gerais e de eu ir visitá-
la lá.

Sem comentários:

Enviar um comentário